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Um 8 de março para além das lutas das mulheres

Há aproximadamente seis anos, um discurso no mínimo pitoresco foi entoado da tribuna da Câmara Municipal de São Paulo. Seu autor, um antigo e bem sucedido cantor popular, conseguira se alçar ao exercício da vereança por meio dos tênues resquícios do sucesso de outrora somados a sua inusitada participação em um reality show transmitido nacionalmente e que acabou por retirá-lo das mais recônditas periferias do ostracismo.

O então ilustre vereador, de sotaque característico e extravagância nas entonações, destacou-se também por seus caricatos posicionamentos conservadores. No discurso cuja menção inicia o parágrafo, fez uma defesa enfática, machista e sem rodeios da nefasta prática da exploração sexual de crianças e adolescentes em nosso País, serviço cuja procura por estrangeiros costuma ser bastante intensa.

Afirmou o dileto ex-parlamentar (diferentemente das últimas eleições, não conseguiu se reeleger no pleito de 2012) que o visitante que vem ao país atrás de sexo não pode ser considerado criminoso: “ninguém nega a beleza da mulher brasileira. Hoje as meninas de 16 anos botam silicone, ficam popozudas, põem uma saia curta e provocam. Aí vem o cara, se encanta, vai ao motel, transa e vai preso? Ninguém foi lá à força. A moça tem consciência do que faz”, declarou. “O cara (turista) não sabe por que ela está lá. Ele não é criminoso, tem bom gosto.” Ainda, para o ex-edil da capital paulistana, há “demagogia” e “frescura” nos que divergem da sua tese.

Nesse contexto de reivindicação e luta contra os grilhões culturais e socioeconômicos que solapam um tratamento verdadeiramente digno, respeitoso e igualitário às mulheres do nosso País tanto por parte do Estado como da própria sociedade, creio que seja pertinente fazer a seguinte indagação: o que o machismo, a homofobia e a violação – sexual ou não – dos direitos das crianças e adolescentes tem em comum? Quase tudo.

Em uma sociedade machista, preconceituosa, classista, heteronormativa e adultocêntrica como a nossa, o contexto de violência contra mulheres, homossexuais e crianças costuma se entrelaçar de maneira bastante íntima, visto que brotam do mesmo bloco homogêneo de ideias e concepções caracterizadas principalmente pelo mais tacanho conservadorismo que ainda alça o sujeito branco, heterossexual e adulto ao status de super-cidadão, dotado de privilégios e direitos alijados de todos aqueles que divergem deste padrão.

O sujeito machista, cuja concepção de estrutura familiar ainda se funda na centralizadora e hierarquizada lógica patriarcal de irrestrita submissão da mulher ao homem, compartilha, em regra, da bolorenta opinião de que o conceito de família é e sempre será fundamentado no estanque modelo de homem, mulher e filhos, não havendo qualquer margem para a diversidade.

Acontece que, com a crescente complexidade das relações intersubjetivas e o reconhecimento da sociedade enquanto plural e consequentemente submetida às constantes transformações dos conceitos e valores que a arraigam, o vínculo sanguíneo passou a ser secundário na caracterização da família, que hoje abarca um grande número de espécies que, por sua vez, independem de qualquer grau de parentesco.

Com efeito, a tônica caracterizadora de um núcleo familiar passa necessariamente pelas relações de afeto entre seus membros, elemento nuclear na definição da família, independentemente da existência de filhos, laços sanguíneos, orientação sexual bem como da existência de relações carnais entre seus membros.

O tradicional “chefe de família”, reproduzido na figura paterna que, de postura centralizadora e militaresca, provem sozinho o lar e disciplina a esposa dona-de-casa e os filhos mantendo-os em permanente estado de submissão, é figura que caminha fatalmente para a extinção. As famílias em geral estão, cada vez mais, lançando mão desse modelo antiquado e hierarquizado de relações intrafamiliares, reconhecendo, além da sua falência, o afeto como único e indispensável atributo para a conceituação da família contemporânea.

Tais conquistas são uma clara consequência da crescente emancipação política, socioeconômica e sexual das mulheres, cientes da histórica opressão que lhes cai aos ombros e, ao mesmo tempo, da força transformadora que possuem enquanto coletividade. Está aí a bem sucedida iniciativa da Marcha das Vadias que, em nível internacional, questiona os paradigmas e convenções sociais que diariamente matam e oprimem mulheres de todo o planeta.

No que diz respeito à violência contra mulheres, esta nasce muitas vezes da relutante insistência dos seus companheiros em manter no seio familiar este anacrônico e ultrapassado modelo. Acossadas por uma cultura de vergonha, dependência e submissão, as vítimas tendem a não possuir estímulo e condições para denunciar e assim confrontar o contexto de violação no qual estão inseridas. Para o agressor, prenhe de arcaicas concepções que o fazem se arrogar na  deplorável autoridade do chefe de família, a independência e a autonomia da mulher passa a ser confundida com insubordinação, e daí para as vias de fato é muito, muito pouco.

A incapacidade de compreender que o direito de formar núcleos familiares também se estende a homossexuais, por exemplo, parte do mesmo equivocado entendimento de que desde as primitivas comunidades pré-hominídeas a definição de família continua a mesma. E se o incômodo com a sexualidade alheia é uma marca da nossa sociedade, a formação de famílias homoafetivas ainda é vista por muitos como uma transgressão moral em grau máximo que deve ser combatida com discriminação, desrespeito e violência, seja física ou moral.

Se o elo entre machismo, feminicídio e homofobia é evidente, passando pela compreensão, dentre outras coisas, de que a família deve se reger pelos dogmas do feudal patriarcado heteronormativo, a ligação destes dois com a violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes é ainda mais intensa.

As agressões perpetradas contra mulheres e que costumam ocorrer no ambiente doméstico e familiar acabam por resvalar, física ou simbolicamente, nas crianças que estão sob a responsabilidade do casal, que passam a naturalizar este contexto agressões físicas, verbais ou psicológicas – as meninas, na condição de potenciais vítimas, oprimidas pelo ideário machista que marca a pele de suas genitoras com sucessivos hematomas (quando não são as próprias crianças que são as vitimadas), enquanto os meninos como potenciais agressores e reprodutores do discurso misógino, moralista e patriarcal que alicerça toda sorte de agressões contra mulheres.

A agressão, seja física ou simbólica, passa assim a interferir no desenvolvimento personalidade daquelas crianças e adolescentes, ainda em formação biopsicológica, mesmo quando “apenas” presenciam a violência.

Ainda, a situação das crianças sob o ponto de vista da autodeterminação é mais delicada. Demais setores e segmentos da sociedade podem se aglutinar na luta política pelo reconhecimento e realização de direitos. Mas e as crianças e adolescentes? Possuem essa autonomia e capacidade de organização? Por óbvio não, o que as submete ainda mais às prevalentes e deformadoras concepções culturais adultocêntricas que, com requintes de um machismo sádico, deram ensejo a julgado do Superior Tribunal de Justiça que absolveu sujeito que manteve relações sexuais com garotas de 14 anos de idade em situação de exploração sexual por entender que as mesmas “sabiam o que estavam fazendo”.

Direitos, políticas públicas e ações afirmativas voltadas às crianças e adolescentes costumam ser marcadas tanto pelos mantras do adultocentrismo como pela cartilha da heteronormatividade, imperantes em uma sociedade que insiste em tratá-las como meros adultos-mirins enquanto frustra e impede o recorte de gênero como elemento do processo educacional de formação dos nossos jovens. Um verdadeiro favor à manutenção de uma miríade de dogmas sexistas formalmente sedimentados desde a mais tenra idade na cabeça das pessoas.

O tratamento por parte do Estado às crianças e adolescentes, assim, acaba por adotar essa perspectiva unilateral como regra, resgatando a ultrapassada e lamentável ideologia do – de triste memória – Código de Menores diretamente dos porões das quinquilharias legislativas que, em tempo revogadas, possuem valor unicamente histórico. Revivendo os parâmetros menoristas de tratamento dispensado às crianças e adolescentes anteriores à vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, acabam por regredi-los à antiga e lamentável condição de objetos, não de sujeitos de direito.

Em ritmo aquém do que gostaríamos, a cultura do desrespeito e da ignorância acima definida em algumas de suas inúmeras matizes vem sendo aos poucos desconstruída. E uma maneira de combatê-la é exatamente neutralizando os frágeis discursos que as sustentam, embebidos até o pescoço nas superficiais fontes do senso comum.

O despretensioso e muitas vezes jocoso discurso de ódio, trivial e corriqueiro, proferido nas reuniões de família, festas de aniversários e mesas de bar, é o que mais profusamente legitima as nefastas práticas neles consubstanciadas, mesmo que não seja esta a intenção direta. Confrontá-los com propriedade é dever de todos os comprometidos com a construção de uma sociedade em que a barbárie, a misoginia e o preconceito passem a ser a exceção, e não a regra.