As pessoas confundem tudo. Quando digo que não sou marxista, todos acham que sou um antimarxista extremista, ou mesmo um direitista, como se o mundo só fosse dividido entre Marxismo e Antimarxismo. Quando digo que algumas análises sócio-econômicas e históricas de Marx são tão válidas quanto qualquer outra, os antimarxistas “de fato” dizem que sou marxista ou esquerdista, mesmo que não seja nada disso. Ou seja, para alguns, qualquer meio que defendo é suficiente para me classificar no outro extremo, mesmo que tudo o que eu defenda seja nada mais que o meio-termo de sempre.
O problema é que análises como a marxista ou a positivista oferecem algo que é estranho às Ciências Exatas e Naturais e às Religiões Dogmatizadas: outros olhares sobre o objeto. Quando olhamos uma sociedade, não estamos olhando átomos ou a reprodução de invertebrados, estamos observando seres mentalmente complexos, dotados de consciência e capazes de realizar escolhas, ou seja, estamos diante de um sistema que se organiza em padrões aleatórios interdeterminantes. No caso, quando surge uma teoria sobre a História, a Sociedade ou sobre a Economia, ela sempre partirá de um olhar tido como pressuposto, mas cujas variáveis serão sempre interdepententes e transdependentes (dependem internamente e dependem da relação de elementos menores com o universo externo a eles).
O problema, como assinalou certa vez Humberto Maturana, é que as Ciências Exatas e da Natureza partem do princípio de que os conceitos são construções herméticas, e de que existe uma hierarquia dos seres. Um nível superior determina o comportamento de um nível inferior no sistema, e se dizemos que algo é Vivo, qualquer coisa que se comporte como vivo, mas que não esteja dentro da definição hermética de vida, não será considerada vida. Se aparecer em algum lugar do universo uma consciência que não esteja vinculada a um sistema considerado como vivo, então não será considerada consciência, e isso gerará um problema de definição. Esses problemas surgem porque essas ciências no sentido popperiano da palavra desenvolvem-se sobre princípios herméticos e imutáveis, mesmo que a estrutura dessas ciências abra espaço para redefinições. Isso significa que, apesar de dizerem o contrário, a grande massa de cientistas sempre será conservadora em sua essência.
Problema oposto vemos nas Ciências Humanas (apesar de eu não gostar muito desse termo aplicado às Humanidades, mas, tudo bem, deixemos passar). O objeto das humanidades depende de um conjunto de olhares diferentes, de ângulos diferentes, e quase sempre tendendo à interpretação aberta do objeto analisado (em oposição ao hermetismo da interpretação exata ou natural). Isso significa que a definição de um objeto nunca será a mesma em dois teóricos diferentes, pois dependerá de que “vetor” ou “movimento de energia” desse sistema esteja sendo focalizado no momento. Também não existem hierarquias de seres. Um nível superior ou inferior podem se determinar mutuamente, algo que é estranho às Ciências Exatas ou Naturais. O comportamento do objeto de análise das Humanidades e do objeto de análise das Exatas e Naturais são tão distantes e exóticos um em relação ao outro que chega a ser burrice ou idiotice das mais profundas reduzir o universo estudado de uma à outra, como se existisse um “fator humano” na formação de um planeta, ou como se a estrutura do átomo fosse determinante para a estrutura da sociedade.
O olhar Marxista parte do princípio de que a energia que sustenta o sistema social (chamado em sua linguagem de Modo de Produção) determina a História e, com isso, determina a organização social, a religião, a educação, o comportamento e a realidade. Ou seja, é da Economia que partiriam as demais esferas de um sistema social. O problema, principalmente para o Marxistas, é que Marx está correto aí, mas também está errado. Daí, pode-se perguntar: como é possível dois valores de verdades contraditórios numa mesma assertiva? É simples para as Humanidades: mesmo que um sistema possa ser compreendido pela lógica, não pode ser reduzido a ela.
Basta uma análise rápida da História e poderemos perceber que Marx estava certo: a Economia fundamenta a História. Porém, o que fundamenta a Economia? A História. Tudo bem que é um ponto de vista coerentista, mas o problema é que, como todo e qualquer sistema, pouco importa quem veio primeiro, se foi a Economia ou a História, o que importa é que um e outro se determinam mutuamente. Daí, Marx está certo em dizer que a Economia é o fundamento da História, mas também está errado, pois a História também determina a Economia. Mas, qual é o maior problema de Marx então? Ora, ele reduz todos os valores históricos à Economia, afirmando que a sucessão de eras da humanidade se deu somente pelo fato de o Meio de Produção mudar. Se temos um meio de produção escravista, temos uma sociedade, e se temos um meio de produção mercantilista, temos outra sociedade.
O olhar de Marx, redutível à Economia, ignora outros princípios que, assim como ela, também fundamentam uma sociedade, e são igualmente úteis para descrevê-la. Eu poderia citar a Religião. A Religião Católica determinou por muito tempo o Meio de Produção Feudal, e o Protestantismo está nas bases do Capitalismo. A organização familiar está nas bases do sistema totêmico, enquanto que a organização microfamiliar é determinante para a sociedade urbana contemporânea. A língua falada pode ter seus sentidos alterados em decorrência dos eventos históricos, na mesma medida em que os eventos históricos podem mudar em decorrência de alterações na linguagem. Marx, Weber, Adorno, Durkheim e outros sociólogos quase sempre negligenciaram que a história é uma via de mão dupla, as coisas se determinam mutuamente o tempo todo.
Por isso eu concordo com as análises de Marx, mas não sou marxista. Concordo com as análises de Durkheim, mas não sou positivista. Concordo com as análises de Adorno, mas não sou adorniano. Cada qual oferece um olhar do objeto, que não pode nem deve ser analisado como um todo (visto a História e a Sociedade serem todo um universos à parte), e muito menos reduzidos à própria análise. Da mesma forma não é possível entender o universo físico como um todo (dependemos de ciências separadas, como a Química, a Termodinâmica, a Física Quântica, a Astrofísica e outras para entender seu funcionamento).
Por causa disso, se digo que é natural as palavras assumirem significados novos, sou chamado de Politicamente Correto. Se digo que argumentos precisam de termos exatos para serem bem compreendidos, sou taxado de Conservador. Se defendo a análise Marxista como tão válida quanto as demais, dizem que sou Marxista. Se falo que Marx errou por ser redutor de princípios, me chamam de Antimarxista. Se coloco sobre a mesa termos exatos sobre qualquer assunto (como a estética, por exemplo), meu julgamento dependerá de qual lado foi escolhido pelo interlocutor. Se ele for de Direita, dirá que defendo ideais esquerdistas, marxistas e politicamente corretos. Se meu interlocutor for marxista, dirá que estou sendo um direitista, antimarxista e ultraconservador.
Para o Marxista, o Capitalismo é um sistema econômico satânico que deve ser extirpado da existência como uma verruga a ser cauterizada. Para os Antimarxistas, o Marxismo é que é essa verruga a ser cortada fora do corpo, proibida na mídia e erradicada das bibliotecas. No fim das contas, ninguém quer diálogo, quer apenas a prevalência de seu ponto de vista para não ceder terreno no campo ideológico. Há quem olhe para o arco-íris e só enxergue as cores das pontas. Lástima isso!