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Harlem Shake em Natal: do espetáculo à tragédia?

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Quem vive na net com alguma freqüência já deve ter sabido do viral Harlem Shake. Quatro caras sacolejando o corpo ao som de uma música (“Harlem Shake”, do produtor americano Baauer) fantasiados de super-heróis. Foi se expandindo pelo mundo, coisa e tal, tal e coisa… Aí uma galera organiza, no Facebook, um flash mob lá no Midway pra se juntar pra música. Pensei em ir, deixei quieto. Minha irmã foi. Deu muita, mas muuuuuuuita gente; fiquei até surpreso com uma foto que vi:

 

Saiu o vídeo também. No fim das contas, não houve um Harlem Shake, só uma galhofa mal-organizada ao som de “O Bode”, cantado pela banda Grafith. Mas o que me incomodou foi um texto que acompanhava a imagem acima. Transcrevo o conteúdo original, com todos os sics:

 “HARLEM SHAKE, a mais nova tragédia digital.

Arrancados os olhos de Édipo, faz-se o espetáculo. Se não fosse trágico, seria engraçado.

Guy Debord, o criador do conceito de “sociedade do espetáculo”, definiu o termo, que corresponde a uma fase específica do capitalismo, como o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens.

(Não se preocupem, qualquer semelhança é mera coincidência!)

O Facebook – rede social que se sustenta através do compartilhamento de imagens – trás sua mais nova atração digital, que já está sendo vinculada em toda a internet: O Harlem Shake.

A novidade, pasmem, é que o tal do Harlem Shake está conseguindo mobilizar diversos usuários das redes sociais para além das teles dos computadores em grandíssimos “evento humorísticos”. Não é incrível?

Na cidade de Natal- RN, por exemplo, onde a saúde, educação, infraestrutura, se encontram em estado de calamidade, estamos nos unindo em nome do… humor! Quantas e quantas mobilização de lutas sociais, culturais, se fez nessa cidade sem que conseguíssemos unir a metade dessa gente? Pena! Tanto esforço na luta cotidiana para sermos superados por uma piadinha momentânea sem graça.

Tragam mais trigo e narizes de palhaço, já que o povo desse planeta gosta é de pão e circo!

Rir para não chorar.

Édipo, pelo menos, teve culpa. Arrancou seus próprios olhos para reparar seu erro e livrar todo o seu povo da maldição dos deuses. Teve um propósito nobre. Mas, o que dizer daqueles que os arrancam apenas porque é mais confortável para si, daqueles que os arrancam porque sabem que assim não podem mais chorar, só rir?

Se não fosse trágico, seria engraçado. Mas, só se não fosse trágico!

 Texto de Phirtia Raianny”

Devo dizer, antes de mais nada, que concordo com a intenção da crítica de Phirtia. Com efeito, esse flash mob foi mais visualmente impactante que algumas das manifestações políticas recentes aqui na cidade – deu mais gente do que seu equivalente na Avenida Paulista! Mas o texto possui dois problemas conceituais grandes, e que comprometem sua força. Em primeiro lugar, a alusão a Édipo não faz o menor sentido. Ora, a tragédia edipiana é, essencialmente, a tragédia de um único indivíduo – e, segundo Aristóteles, não é qualquer indivíduo que sofre uma tragédia: somente aqueles que possuem um caráter e temperamento nobres. Alguém assim nem sonharia em participar do Harlem Shake; desprezaria, na verdade, o caráter cômico e gratuito desse evento. A metáfora do olho vazado é ainda menos adequada. Édipo furou os próprios olhos como um modo simbólico de demonstrar não a vergonha, que certamente sentiu ao saber da verdade, mas como a atitude de um homem conseqüente com aquilo que se tinha proposto: investigar quem é a causa das aflições em Tebas e puni-lo (Édipo viria a morrer em Colono, mas esse episódio só aparece em outra tragédia de Sófocles). Ninguém ali no Midway pretendia tal façanha. Aliás, de que serviria cegar os próprios olhos, quando o objetivo é compartilhar as imagens (e, de alguma forma, satisfazer o próprio ego)?

Isso nos leva ao segundo ponto, que é o conceito de espetáculo de Guy Debord, formulado em seu livro A Sociedade do Espetáculo. O trecho citado virou parte integrante do caderninho de pensamentos do filósofo e ativista francês (se bem que o próprio livro de Debord já possui esse caráter aforismático). Ainda que haja uma força imagética notável, e ainda que essas imagens estejam inseridas num determinado contexto marcado pelo capitalismo (e pelo comunismo também – taí os cultos de personalidade de Stalin e Mao que não me deixam mentir), há que ver dois detalhes importantes na teoria de Debord (1). A descrição dele de espetáculo diz respeito a uma aparência de sentido e integração, o que não existe nos vídeos baseados no viral. São puro nonsense. Por outro lado, a análise de Debord depende de uma concepção tradicional de “meios de comunicação de massa”. A menos que a Internet seja considerado um (o que não é tão claro), não funciona: a dominação implícita no conceito de espetáculo é uma dominação vertical, ao passo que a difusão do viral é um fenômeno essencialmente amorfo (não diria nem horizontal, porque a lógica de dispersão de informações na Internet está longe de ser linear). Malgré lui, o Harlem Shake se transformou num mote para protestos políticos na Tunísia e no Egito. No Egito, os jovens protestaram pela saída do presidente Mohamed Mursi. Na Tunísia, a brincadeira (era uma brincadeira, no início, realizada no Instituto Superior de Idiomas, em Túnis) se transformou em um protesto contra a intolerância depois que um jovem ultraconservador tentou barrar a filmagem, no que foi impedido, e depois do pedido de investigações do ministro da educação, Abdellatif Abid, quando viu um outro vídeo ainda mais suspeito de atentar contra o Islã.

Se a música é adequada ou não a esses protestos, não sei. Mas esse mesmo problema da espetacularização das relações sociais atinge mesmo eventos políticos como a Marcha das Vadias. Do FEMEN, então, nem se fala – eu suspeito muito da agenda política delas. Contrárias à prostituição, nacionalistas (“Projetar a imagem da Ucrânia, o país de grandes oportunidades para as mulheres”), selecionam as militantes por currículo (!) e peitos: alguém aí conhece uma FEMEN feia? O que elas querem, na verdade, é um feminismo (?) de vitrine, alimentado a leite com pêra, que deseja apenas que as mulheres sejam livres pra serem o que já são hoje em dia: submissas. Mas voltemos à Marcha das Vadias. As diferenças de vestuário: ao contrário da bravata de Sara Winter, a dondoca do FEMEN Brasil, que as condenou por não fazerem um protesto “vestidas como gente”, estão, de longe, bem mais cobertas que as pseudofeministas peladas. Agora, existem pelo menos dois problemas que atingem o evento (pra não dizer o movimento feminista como um todo, que nem sempre consegue acolher a pluralidade de lutas que deveria). O primeiro deles é a ausência de uma luta negra explícita dentro do movimento. O coletivo americano Black Women’s Blueprint, em carta aberta à Marcha das Vadias, apóia o movimento, mas pede a elas que revejam sua agenda, de modo a incluir lutas locais e ajustar a inserção de mulheres “de maneira que respeite sua cultura, sua linguagem e seu contexto” – além de rever o termo “vadia”, que, no caso das mulheres negras, não diz respeito meramente a uma vestimenta. A ativista e ex-prostituta Rebecca Mott, contudo, é bastante cética quanto à Marcha, alegando que as participantes apenas fingem ser putas, e que o próprio estereótipo de puta é combatido pelas prostitutas. O que me chamou mais atenção foi Mott indicar uma liberalização do movimento – o que homogeneiza as bandeiras políticas locais e, inesperadamente, escamoteia o problema da violência masculina como um todo, que não se detém apenas numa questão de vestuário.

Por que é que confrontei o Harlem Shake de Natal e a Marcha das Vadias? Pelo motivo básico de que nem sempre as coisas são tão aparentes quanto parecem. O Harlem Shake de Natal já tá pra lá de Harlem Shake (e o Harlem Shake já tá pra lá de Harlem Shake também – a única coisa que relaciona o viral e a dança é o sample da música de Baauer: “and then do the Harlem shake”), e não tem nada a ver nem com Édipo, e quase nada a ver com Debord. Por outro lado, a Marcha das Vadias (e outros eventos de luta social, no fim das contas) precisa tomar cuidado para não sucumbir àquilo que deu origem ao movimento: uma imagem. Há críticas de todos os lados, de conservadores a anarquistas. Além disso, nem sempre o interesse num evento fútil como o Harlem Shake é feito por desocupados; falo por mim, que estive em um gravado no circular da UFRN. (Parando pra pensar melhor, estrategicamente o ônibus não foi lá o melhor local pra se fazer, mas já era, não me arrependo.) Se Phirtia desejava fazer uma crítica mais incisiva, bastava elaborar a partir de uma idéia que vi numa foto compartilhada por David Rêgo, editor da Carta Potiguar e professor da rede estadual: a falta de organização do flash mob, que provocou um tumulto desnecessário, tanto pra quem estava participando como pra quem não estava (2). Esse é o ponto que deveria ser atacado, pois grande parte dos vídeos rolando pela net com esse viral indicam um mínimo de organização, sem sair arrumando confusão em espaços públicos. No fim das contas, Harlem Shake em Natal não é nem uma coisa nem outra.

 

(1) Remeto a leitura para estes textos, para detalhes: A sociedade do espetáculo, de José Aloise Bahia, e Espetáculo, comunicação e comunismo em Guy Debord, de João Emiliano Fortaleza de Aquino.

(2) Esta nota é, de certa forma, redundante, pois é uma conclusão implícita de meu texto. Mas houve outro comentário um pouco, digamos, neutro, mas também relevante: hedonismo e luta política não são antônimos. O próprio Debord propagou uma estratégia de ação política que se aliava também à arte: o situacionismo. Mas isso é outra história.