Quando afirmei que os professores brasileiros fazem greve pelos motivos errados, estava falando parte da verdade. O fato é que mudar os currículos é complicado, afinal, como pedirão uma mudança nos assuntos tratados em aula professores que pouco ou nada entendem a respeito dele? Como pedirei o acréscimo de aulas de Mecânica de automóveis na escola se nem mesmo sei dirigir para escrever um projeto?
Mas o problema em si não é o currículo, mas a criação de um sistema que crie alunos realmente interessados naquelas aulas. Por exemplo: porque eu, que hoje trabalho com pesquisa em Ciências Humanas, era obrigado a estudar Química, que nada tem de relevância no meu trabalho e nos meus conhecimentos? Qual era a necessidade que existia na escola em me obrigar a estudar algo que não queria, e para o qual não tinha e ainda não tenho a menor habilidade ou interesse, sob pena de prejudicar meu aprendizado em todas as disciplinas que gostava, como História, Literatura ou Geografia?
Alguns colegas, quando um movimento começava no sindicato, diziam que “abrir mão de um conhecimento e colocar outro no lugar é sempre uma decisão difícil“. Ora! Quem falou em substituir? O maior problema quando discutimos o currículo nas escolas é que sempre pensamos em “um OU outro” e nunca em “um E outro”. As aulas de Química, Física, Biologia, Literatura, Filosofia, Sociologia, Religião não precisariam voar das escolas, a diferença é que também teríamos outras disciplinas que poderiam ser mais interessantes aos alunos. E, para que ele não seja obrigado a assistir uma aula de uma disciplina que não quer assistir, uma boa saída seria criar um sistema de Currículo Livre com aproveitamento de créditos.
Talvez o que estejamos precisando seja uma educação livre com um currículo aberto. Digamos que eu não tenha o desejo nem a habilidade para estudar Literatura. O que farei? Simples, não me matricularei em Literatura. Ah, então não se matriculará em Português? Sim, me matricularei em Morfologia, Sintaxe, Produção de Texto e tudo o mais que eu considere útil ou interessante, ou que seja um pré-requisito claro e criador de habilidades de algo que eu venha a precisar no futuro. O melhor currículo, portanto, é aquele que discrimina por assunto, e não por matéria. É o que deixa que o aluno escolha que assuntos quer pegar, e quais não quer, e ainda acrescente outros assuntos. Assim, eu não me matricularia em Matemática, mas poderia escolher Matemática Financeira, Probabilidade, Matrizes etc. Não me matricularia em História Colonial, mas poderia colocar no lugar, para fechar os créditos necessários, uma disciplina de Natação, Primeiros Socorros, Técnicas de Defesa Pessoal Urbana, Corte e Costura, Técnicas de Olaria, Educação Sexual, Planejamento Familiar etc. Mesmo aquelas disciplinas que um grupo achasse inútil, como Religiões, seria justificado nesse sistema, uma vez que o mundo religioso faz parte do dia-a-dia do aluno, e deve, portanto, prescindir da mesma orientação das demais disciplinas.
Um resultado direto de um aluno que estuda tão somente o que quer aprender na escola é um professor mais satisfeito, com alunos mais interessados e aulas que rendem mais. Se antes tínhamos 40 alunos numa aula de Geografia, com apenas 10 a 15 interessados em aprender Geografia, enquanto que o restante faria qualquer coisa para estar longe dali, qual seria o resultado óbvio? Falta de controle por parte do professor, barulho, bagunça, ausência de motivação e aprendizagem precária.
Por que isso nunca foi implementado então?
Bastante simples: nenhum governo quer educar uma próxima geração livre e capaz de resolver seus próprios problemas. Que governo quer perder a chance de um povo submisso e inutilizado por uma educação precária, que gastou onze anos de sua vida em disciplinas totalmente ineficazes contra problemas práticos do dia-a-dia, como sair ordeiramente de uma boate em uma situação de incêndio? A quem iria recorrer atrás de benfeitorias um povo que soubesse assumir por conta própria as rédeas econômicas de um país, em vez de lamentar o desemprego entre as filas do Bolsa Família? Com certeza, não seria ao governo, cujas benfeitorias costumam acompanhar uma leva de votos para quem as fez.
Tampouco interessa ao governo um povo livre no pensamento, resultado direto de um aluno que passou onze anos de sua vida escolhendo o que aprender. Também não interessa a quem está no poder ter concorrentes. Se um aluno sempre se mostrou mais interessado em Administração, Matemática Financeira e Empreendedorismo, ele será um concorrente forte ao empresário lá de cima que, além de ser muito rico, é quem também sustenta metade dos políticos que elegemos.
O governo também não tem interesse em baixar os salários dos governantes, reverter verbas de subsídios de bancos e fazendeiros para a educação, acabar com os programas assistencialistas e diminuir os gastos com funcionalismo público. Recalcular todos os pequenos gastos inúteis do governo exigiria um trabalho hercúleo, o que os últimos representantes eleitos, dentre semi-analfabetos, barões direitistas e militantes de extrema-esquerda, estão pouco ou nada interessados em fazer.
Enfim, nossos professores, igualmente vítimas de um país que passou mais de 50 anos emburrecendo sua população, dificilmente teriam know-how para debater o acréscimo de Culinária ou Mecânica de Automóveis no Ensino Fundamental e Médio. Acostumados e acomodados com um modo de pensamento arcaico, estão mais habituados a exigir do governo que imponha métodos mais eficientes de empurrar goela abaixo nos alunos assuntos e disciplinas que eles não têm o mínimo interesse em aprender, o que gera um círculo vicioso de alunos bagunceiros, professores insatisfeitos e impositivos, gerando mais bagunça, causando mais insatisfação. No fim, todo mundo cai no mesmo sumidouro e nada se resolve.
Poderia dar um exemplo de um sistema desses no cotidiano de um aluno?
Essa pergunta me foi feita por um colega durante a escrita deste texto. Realmente, não tinha pensado no cotidiano do aluno, mas pelo que percebi, ele teria sua vida diária mudada para a melhor.
Digamos que o aluno de 15 anos, no ato da matrícula, dentre todos os módulos ofertados, se interesse pelas disciplinas Meditação (Segunda, das 8 às 10), Grego Clássico (Segunda das 10 às 12), Laboratório de informática (Terça das 15 às 18), Religiões urbanas (Quarta das 14 às 17), Matética&Técnicas de Estudos (Terça, das 7 às 10), Literatura Inglesa (Quarta das 8 às 10), Escrita Criativa (Quinta, das 15 às 18) e Língua Inglesa (Sexta, das 9 Às 12). As demais disciplinas ofertadas seriam um misto de módulos antigos (Logaritmo, Culinária, Polinômios, Química de Ácidos etc.) e novas disciplinas (Defesa Pessoal, Primeiros Socorros e Natação), mas ele não se interessou por nenhuma delas.
Ele já estudou Primeiros Socorros e Natação, e já estudou Polinômios. Percebe que Meditação não exige pré-requisitos, mas que Grego Clássico e Língua Inglesa exigem conhecimentos em Língua Portuguesa, que ele já estudou, e então consegue se matricular nas três disciplinas. Ele percebe que Religiões urbanas exige já ter estudado qualquer disciplina de Antropologia, Sociologia ou Filosofia, e ele não pegou nenhuma ainda. Então, ele descarta dessa vez e substitui por Tópicos de Sociologia.
E os horários em que não estivesse em aula?
Não se pode esperar todas as iniciativas a partir do governo. Se o povo não se move a respeito, tudo acima tenderá ao fracasso. A escola poderia ofertar um esporte ou exercícios físicos, ou poderia considerar o acompanhar o trabalho dos pais duas vezes por semana como atividades valendo créditos (boa parte das crianças aprende o valor do trabalho se acompanha os pais em seu local de trabalho de vez em quando). Ou poderiam simplesmente realizar grupos de estudos, acompanhados por cidadãos registrados na Secretaria de Educação, duas vezes por semana, valendo créditos (economizando a grana dos cofres públicos). Também poderiam participar de sistemas júnior de produção criados pelos próprios bairros em que moram: agricultura, empresas júnior, grupos de consertos urbanos, cooperativas mirins etc. Isso seria ótimo, pois além de ensinar, permitiria aos alunos uma boa percepção de direitos e deveres civis (esse sistema é usado com sucesso na Islândia) e do valor do trabalho na sociedade. Valendo créditos, valeria também o tempo em que lessem um livro e escrevessem um relatório sobre ele nos horários livres em casa. Enfim, sem apoio da comunidade, e sem campanha do governo nesse caminho, a educação nunca andará, afinal, quem melhor para orientar o aluno no caminho a se andar que a comunidade em que ele vive?
O aluno acordaria de manhã, veria os horários de suas aulas, aproveitaria seu tempo livre para conhecer outros alunos de várias idades pela cidade onde mora, formaria amizades baseadas em grupos de interesse, poderia reconhecer problemas relativos às famílias disfuncionais onde vive e assim poderia corrigir os problemas, e seria mais capaz de viver em sociedade sem se sentir perdido. A pouca interação escolar entre alunos com poucos interesses em comum diminuiria a incidência de bullying e notas baixas, e aumentaria a incidência de civilidade em suas ações. Os professores trabalhariam mais satisfeitos, mesmo ganhando o que ganham hoje, e suas lutas por melhores salários teriam o apoio também dos alunos, cuja rede de afetos criada pela motivação em sala permitiria a eles tornarem-se aliados dos seus mestres.
Agora, se você for professor, me diga? É melhor impor um conteúdo ou deixá-lo livre para os alunos? A criação de melhores condições de trabalho não passaria por aí também? O que vamos reivindicar nas próximas greves?