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A Renúncia de Bento XVI. E daí?

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A HIPERVALORIZAÇÃO MIDIÁTICA

O teólogo Joseph Ratzinger deixará de ser o Sumo Pontífice da Igreja Católica. A decisão pegou o mundo de surpresa. Após a declaração de Bento XVI, especulações de toda ordem foram ventiladas a respeito das razões de sua abdicação da Cadeira de São Pedro; de questões de saúde ao peso de escândalos de sexo, negócio e poder envolvendo a Cúria Romana. O certo é que, se analisarmos com objetividade, a mudança do Papa pouco influi nos negócios humanos – inclusive, arrisco a dizer, entre os católicos. Afinal de contas, não é de hoje que a religião, sobretudo o catolicismo, vem perdendo o seu papel e centralidade no mundo e na vida das pessoas. Vejamos.

Todas as grandes questões e matérias dos assuntos humanos que um dia estiveram sob a égide e o poder de intervenção e legislação da esfera religiosa foram, no mundo moderno, “sequestradas” por esferas profanas. Assim, a condução da sociedade e de seus recursos torna-se matéria da política; a legislação sobre o lícito e o ilícito, matéria do direito; a busca da verdade, matéria da ciência. Esse processo de perda de terreno pela religião e que a fez ficar cada vez menos presente e influente na vida social e cultural, nós, sociólogos, chamamos de “secularização”. E, entre todas as religiões tradicionais, nenhuma perdeu mais terreno nas sociedades modernas do que o catolicismo. Os golpes progressivos que fizeram da igreja católica uma instituição em declínio devem ser interpretados à luz desse marco mais amplo, a secularização.

Desde que Napoleão coroou-se a si mesmo, reduzindo o então Papa Pio VII a um simples coroinha, que o Sumo Pontífice e a Igreja Católica não apitam nos jogos dos poderosos. De protagonistas, os homens do pontificado católico tornaram-se meros figurantes na elite do poder mundial. No entanto, não foi apenas entre o poder profano que o Papa e a Igreja Católica viram o sua força e autoridade minguar. O prestígio e a influência do catolicismo decaíram significativamente até mesmo internamente, isto é, dentro do mercado da fé ou do mercado de salvação das almas. Há séculos a igreja católica assiste o deterioramento paulatino do seu capital religioso – fenômeno que se intensificou com o avanço das igrejas protestantes e evangélicas na América Latina, do Islam na Europa e dos sem religião no mundo todo.

Especialmente na Europa, as igrejas fecham por falta de fiéis. Os seminários estão esvaziados, provocando um profundo déficit de recursos humanos na burocracia eclesial. Em todo o mundo, a religião católica se tornou sinônimo de uma religião que é muito mais declarada do que efetivamente praticada; uma religião frouxa, leniente, a qual os fiéis podem frequentar e pertencer sem maiores exigências em termos de disciplina e doutrina, ao contrário das confissões protestantes, que são bem mais disciplinadoras.

Para fortalecer o diagnóstico de decadência, poder-se-ia, ainda, mencionar os escândalos (pedofilia, corrupção, intrigas políticas) em que integrantes do alto escalão da Igreja estiveram envolvidos nas últimas décadas, assim como o tratamento leniente dado pelas autoridades eclesiásticas e, por último, as seguidas derrotas que a Igreja Católica vem sofrendo no debate público com sua defesa intransigente de pontos de vistas reacionários e refratários aos avanços culturais e liberalizações nos costumes. Tais escândalos e posicionamentos retrógrados – contrários ao espírito da época – contribuíram ainda mais para deteriorar a imagem da Igreja católica junto à opinião pública e setores progressistas, vaticinando o seu declínio enquanto força social e política na esfera pública.

Já há algum tempo, portanto, a igreja católica é uma instituição que luta mais pra sobreviver do que para dominar. Nos dias atuais, o Papa e a Igreja católica não são mais do que símbolos exóticos que o Ocidente admite como vestígios vivos de uma era passada. Porém, se a igreja católica é uma instituição decadente, cadavérica, por que tanta repercussão e comoção com a declaração de renúncia de Bento XVI? Por que diabos, damos tanta importância para uma instituição que hoje é apenas um espantalho, mera sombra de uma instituição outrora grandiosa e imponente, e que um dia foi peça-chave nos equilíbrios de poder no Império Romano ocidental, no feudalismo do norte da Europa e no absolutismo dos séculos XVII e XVIII?  Seria pelo poder simbólico que a Igreja Católica ainda carrega? Ou, seria, com efeito, por conta de uma complacência perante a tradição que ela personifica? Ou seja, pelo fato do cristianismo constituir uma das principais fontes culturais e morais do Ocidente? Sem descartar esses aspectos, destaco uma outra via.

Na verdade, toda essa repercussão e importância não é outra coisa senão uma ficção; uma ilusão proporcionada pelo efeito-mídia dos meios de comunicação. A repercussão da renúncia do Papa – e as estratégias retóricas e metonímicas utilizadas pelos media – nos faz acreditar que a Igreja atual goza de uma importância maior do que a que ela realmente tem. Em busca do fato extraordinário e do sensacional, os media fabricam uma realidade de repercussão e relevância inteiramente fantasiosa, falsa; pois, de fato e na prática, a abdicação e a escolha de um novo Papa interessam e impactam tão somente um pequeno segmento da sociedade, os católicos – e nem tantos deles estão assim preocupados. Portanto, ao contrário do que a reiteração e a cobertura da notícia, as metonímias dos telejornalistas e dos comentaristas e o fluxo contínuo de imagens relacionadas podem nos levar a pensar, a renúncia do Papa não afeta o “mundo todo” e nem possui as implicações e pertinências que seu alarde e a extensão de sua cobertura podem nos levar a crer.

Ora, os desdobramentos econômicos e políticos reais da renúncia ou escolha do Papa são ínfimos. Muito embora, diga-se, não possamos desconsiderar os efeitos de reforço dos pronunciamentos mais conservadores do herdeiro de Pedro – mas, ainda assim, as opiniões e juízos do Papa possuem mais força para reforçar preconceitos onde já existem do que força persuasiva para convencer aqueles que não possuem opinião formada – menos ainda para dissuadir.

A transformação da declaração do Papa em fato jornalístico cria um alarde e uma urgência que não correspondem absolutamente à dimensão geopolítica e cultural do evento. Há uma evidente desproporção, uma hipervalorização de um fato singular que nem de longe se situa na densa e ampla rede de relações políticas, econômicas e culturais em que um dia esteve ligado. Mas, a que interessa essa hipervalorização da renúncia do Papa? Ela ajuda a manter a notícia viva e a audiência presa. Resposta simples.

Atualmente, a escolha do Papa é uma decisão tomada com base e com implicações unicamente no jogo de intrigas e disputas de grupos que lutam pelo poder na Cúria Romana. Nada muito diferente de uma eleição para chefe de departamento numa Universidade. Essa hipervalorização midiática é capaz, de uma só vez, de obscurecer o real grau de relevância do evento, fazendo-nos atribuir um valor que não existe em última análise, como, também, cria a ilusão de vitalidade e permanência de um mundo em ruínas, de uma instituição moribunda.