Limitações Profissionais e Poder de Polícia
Por Ivenio Hermes / Marcos Dionisio Medeiros Caldas
Uma Decisão Inicia Tudo
O episódio envolvendo alguns policiais militares e alguns foliões do bloco “Baiacu na Vara” e que tem sido denominado como um conflito generalizado entre os dois grupos, precisa ter um encerramento adequado para as discussões suscitadas.
O acontecimento precisa ser visto de forma lúcida e sem a fomentação de provocar ambos os lados para irritar mais ainda a opinião pública e os policiais envolvidos direta ou indiretamente no ocorrido. Erros foram cometidos e a revolta causada pela viatura da Polícia Militar que tentou atravessar os foliões do Baiacu e que acabou na detenção de cinco pessoas, diversos foliões e dois policiais feridos, deve ser analisada do ponto de vista técnico da conduta policial.
O fato narrado aponta que por volta das 13h30 de ontem, uma guarnição da Polícia Militar se deslocava para o atendimento de um chamado da Secretaria de Mobilidade Urbana (Semob) de Natal e precisou atravessar pelo meio dos participantes do “Baiacu na Vara” para chegar ao local da ocorrência.
A decisão da guarnição da Polícia Militar, certamente foi a chama que iniciou o incêndio os ânimos das pessoas que estavam no meio do festejo. Se a informação dos tiros para cima for comprovada, algo bem difícil para um Estado sem uma polícia científica que pudesse fazer um teste de resíduos de pólvora nas mãos dos policiais envolvidos, daí nem haveria necessidade de ir mais além nessa análise.
Em primeiro lugar não se deve generalizar para toda a corporação a atitude de alguns, lembrando que o preparo exigido para o exercício da função policial é muito grande e a cobrança maior ainda. Além disso, nem todas as equipes da Polícia Militar possuem o mesmo treinamento, e uma vez inserida numa confusão, essa falta de treinamento vem à tona.
Somente podemos considerar alguns procedimentos que deixaram de ser tomados considerando a situação inicial.
-
Conhecimento Prévio: a guarnição da PM precisava estar ciente de sua área de trabalho e rotas de deslocamento, nunca optando para chegar até uma região de solicitação através de um bloco carnavalesco conhecido e tradicional, que se utilizava daquela via por onde passariam para atingir seu objetivo;
-
Discernimento Situacional: na ausência do conhecimento anterior, ao deparar-se, num caso furtuito, com a situação, os policiais deveriam buscar uma saída alternativa, jamais tentar adentrar uma multidão de pessoas que estavam envolvidas pela emoção do carnaval;
-
Despreparo Operacional: quando optaram por avançar através dos foliões, independentes de terem atirado ou não, a adoção de uma postura de autoridade foi entendida como autoritária e provocativa, acirrando os ânimos dos foliões que já estavam sob o efeito do calor, alguns do álcool e que não tinham como entender a necessidade daquela ação se proceder da forma como estava acontecendo.
Cristina Medeiros, fundadora do Baiacu na Vara, disse que os membros do bloco até tentaram cooperar. A atitude, que pode ser de exagero de ostensividade dos policiais provocou pânico. A partir daí até tiros as testemunhas afirmam ter ouvido, e a ocorrência original, que não suscitava um deslocamento de urgência tão elevada, deu lugar a uma ocorrência secundária desastrosa.
Desproporcionalidade de Ações
O policial deve agir com sua conduta pautada dentro da legalidade, proporcionalidade, necessidade e conveniência. Sob a ótica desses quatro aspectos determinadores da postura do encarregado de aplicar a lei, é fato saber em quem reside a culpa pelo desencadear dos eventos.
Os policiais não devem esquecer que em grande parte das situações do cotidiano não estarão lidando com bandidos. No caso específico de lidar com multidões, os grupamentos de CHOQUE têm isso como doutrina pétrea, pois precisam enfrentar distúrbios causados por pessoas que reivindicam direitos, cuja tendência motivada pela comoção das massas é a de extrapolarem suas emoções.
Havia legalidade em passar com a viatura pelo meio do bloco? Pode-se afirmar que sim, afinal, o deslocamento emergencial de uma viatura tem prioridade sobre certos deslocamentos;
Era uma atitude proporcional em relação à natureza da ocorrência inicial? Fica mais difícil de responder que sim. Não há um fato que justifique que a guarnição não pudesse procurar uma via alternativa ou que não tivesse se inteirado anteriormente do histórico do Bairro da Redinha onde o bloco Baiacu na Vara já pratica seu desfile há anos;
Tinha necessidade de impor a autoridade policial para um grupo de foliões a fim de passar com a viatura no meio deles? A resposta adequada seria não, mas não se sabe o que aqueles homens dentro da viatura ouviram do CIOSP que os acionou, e que talvez os tenha induzido ao erro de uma falsa necessidade;
Era conveniente usar aquela rota? Não pode haver maior conveniência para o atendimento de uma ocorrência do que a chegada rápida e segura ao local do chamado. Não foi isso que aconteceu.
Agindo sem prestar atenção a esses quatro pilares da operacionalidade policial, os policiais militares foram em busca de consequências que poderiam ter sido bem mais graves do que as que resultaram de suas ações.
Lado B: Membros do Baiacu na Vara e outros
A provocação foi respondida e quem estava na rua tentou repelir a ação policial usando os meios que lhes eram oportunizados, como latas, cocos e pedras.
A população não estava correta em reagir daquela forma, mas ela era apenas a multidão provocada por ações descompensadas e desproporcionais dos profissionais encarregados de proteger e servir, e não de impor autoridade através da força ilegítima e impensada.
O dano causado à viatura foi outra reação desencadeada pela falta de profissionalismo policial. Os agentes estavam lidando com pessoas do povo que estavam brincando o carnaval, a maioria havia consumido bebida alcóolica durante todo período carnavalesco que se encerrava sem maiores acidentes e também estavam sob a influência do calor. Até um professor, João Batista da Silva, foi detido pela suposta agressão a um policial.
Entretanto, no vídeo disponibilizado no YouTube, é nítida a ação equivocada de um policial aplicando uma gravata em um folião para retirá-lo do local, uma técnica ultrapassada que levou o folião a perder a consciência por asfixia, algo que poderia tê-lo matado. Outro policial, munido de um alicate de arrombamento utilizado para ações de entradas obstruídas, ameaça as pessoas que se aproximam e o abana no ar, se numa dessas investidas ele tivesse atingido alguém, seria uma desgraça maior.
Pelas redes sociais, policiais sérios informaram que o “alicatão” havia sido apreendido, o que não parece ter ocorrido, visto que ele é usado durante um bom tempo como se fora uma trunfa.
Numa foto, o policial do alicate parece fazer a segurança de outro policial que aponta o fuzil para uma pessoa. Seu descontrole está presente na proximidade que ele deixa a ponta do armamento próximo ao possível detido.
Pessoas foram detidas por desacato e dano ao patrimônio, mas a atitude de tomar a câmera do repórter fotográfico Paulo Almeida e o celular de Suely Regina da Silva (ambos registraram boletins de ocorrência contra policiais militares) também não seria punível?
No meio do acervo de erros, Hugo Manso, um vereador que também era folião do bloco, tentou contemporizar com os policiais que se mostraram irredutíveis.
Outras situações de excesso foram relatadas e que nem precisam ser mencionadas diante das fotos disponíveis na internet e o vídeo do YouTube.
Evidencia-se, por outro lado, a necessidade da população em redimensionar e requalificar seu relacionamento para com o álcool, sobretudo, em eventos de reuniões de massa. A vida vale sempre mais!
O Papel da Segurança Pública
A segurança pública é a legítima demanda e necessidade da sociedade estabelecida na Carta Magna, ela tem a função de garantir ao cidadão a proteção aos seus direitos e servir de mecanismo para assegurar sua tranquilidade e paz.
Para que essa função atinja seu objetivo, legitimado pelo Estado, aos encarregados de aplicar a lei é atribuído o poder de polícia e assim também poder manter certo controle social.
Dentro desse poder de polícia, é admissível o uso da força como imposição aos atos de resistência contra a ordem pública estabelecida no Estado Democrático de Direito. Contudo, esse poder precisa de limitações, dentre essas limitações estão os direitos dos cidadãos no regime democrático, as prerrogativas individuais e as liberdades públicas garantidas pela Constituição.
Ao agir contra as limitações de sua profissão ou do poder de polícia a eles conferidos, os policiais militares da guarnição que deu origem aos fatos (e não ao grupamento do Batalhão de CHOQUE que foi posteriormente acionado para controlar a situação), provocaram a comoção popular que lhes gerou ferimentos. De fato, eles foram vítimas da própria ação inicial por eles promovida.
O policial nada mais é do que um cidadão do povo, que deveria estar sensível aos problemas sociais e, portanto, exercer dessa forma, sua profissão com maior zelo. Agindo sem controle emocional ou sem preparo para a função, seu poder de polícia ultrapassa os limites impostos pela lei, perdendo a legitimidade da democracia para se tornar um ato de arbitrariedade.
O assunto é grave e recorrente, posto que em toda manifestação de caráter popular tem havido desfecho semelhante ao verificado no final do carnaval da Redinha, como por exemplo nos eventos do Fora Micarla ou na Revolta do Busão, ambas legítimas lutas encetadas pela Juventude natalense. A segunda pela justeza da repulsa ao aumento indevido e a primeira, por ter descortinado mais de um ano antes, aspectos da então gestão, que as instituições só foram capazes de materializar em atos concretos ao final de 2012. A juventude está sempre à frente…
Imprescindível que nossos órgãos de segurança estudem a realidade a ser protegida, construindo redes de diálogos com as comunidades e não exorbitando aos seus limites, pois a ele policial cabe a defesa da população e o uso da força e arma de fogo só pode se materializar na mais precisa observação das normas estabelecidas pela ONU para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, regulamentação, inclusive, que o estado do Rio Grande do Norte deveria fazê-la sem mais qualquer tardança e que, mais que a letra de uma lei, propiciasse que todo o efetivo das polícias potiguares fosse requalificado à luz da Constituição Federal e dos Direitos Humanos desautorizando as resquícios da Doutrina de Segurança Nacional.
Em meio a uma verdadeira Guerra Civil que ocorre no nosso estado, sobretudo, em Mossoró e na Região Metropolitana de Natal, nunca é demasiado observar-se que a violência, conforme assevera o psicopedagogo Ricardo B. Balestreri:
“É um fenômeno retroalimentado. Quando praticada por agente estatal, especialmente, semeia na sociedade elementos de fragilização moral, detonando, de forma rapidamente incontrolável, pulsões agressivas do inconsciente coletivo, que deveriam permanecer saudavelmente “recalcadas”, se as “figuras modelares” tivessem dado o bom exemplo”.
Menos voluntarismo, maior planejamento e política de aproximação para com a comunidade que protege, é o caminho a ser seguido.
Ademais, urge mesmo que, de uma vez por todas, a lógica da guerra fria seja apartada da boa prática policial necessária para proteger aos Cidadãos, à Cidadania e ao Estado Democrático de Direito.
BIBLIOGRAFIA:
LIMA, Marcelo. TRIBUNA DO NORTE (Brasil RN Natal) (Org.). “Baiacu na Vara” termina em confusão. Disponível em: < http://db.tt/Go1nYCBP >. Publicado em: 14 fev. 2013.
MOURA, Tallyson. NOVO JORNAL (Brasil RN Natal) (Org.). Baiacu na vara do cassetete. Disponível em: < http://db.tt/22cLsxqI >. Publicado em: 13 fev. 2013.
VIA CERTA NATAL (Brasil RN Natal) (Org.). Fotos do confronto entre foliões do ‘Baiacu na Vara” e Polícia Militar na Redinha. Disponível em: < http://db.tt/TB7A6UfR >. Publicado em: 13 fev. 2013.
GLAUCIA, Paiva. Policial Militar é ferido por foliões na Redinha. Disponível em: < http://db.tt/DaBD1p7c >. Publicado em: 14 fev. 2013.
GOLEMAN, Daniel. La Inteligencia Emocional: Por qué es más importante que el cociente intelectual. 25. ed. Buenos Aires, Argentina: Javier Vergara, 2003. 397 p. (Grupo Zeta).
LAZZARINI, Alvaro. Poder de Polícia e Direitos Humanos. In: Revista Força Policial. Polícia Militar de São Paulo, n. 30 abr/mar/jun 2001. São Paulo, 2001.
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Edições CAPEC, Gráfica Editora Berthier, Passo fundo, RS, 2003. 27 p.