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Detalhes tão pequenos

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Há cerca de um mês Roberto e Flávia romperam o namoro. Ambos jovens, mas já amargurados com o fim de um relacionamento que existiu sob a marca da intensidade. As curvas do caminho, porém, acharam por bem separá-los, ignorando completamente o batimento de seus jovens corações. Engana-se quem pensa que tudo estaria esquecido em mais algumas semanas, quem sabe em alguns dias. Não. Algo ficou pairando no ar, buscando vitalidade em um sentimento que teimava em existir entre aqueles dois amantes cabeçudos e pretensiosos.

Roberto morava no prédio em frente ao de Flávia. Na verdade, suas janelas eram verdadeiros camarotes para o quarto do outro, de modo que mesmo depois do término do namoro, Roberto costumava olhá-la toda noite quando chegava da aula. O mesmo fazia Flávia, só que às escondidas, para não ser notada. Roberto não tomava a mesma precaução e deixava-se flagrar espiando os passos noturnos da ex-namorada.

Da sua janela, Roberto viu quando Flávia tirou o porta retrato com a foto deles dois do criado-mudo ao lado da cama. Uma pontada abateu-lhe o coração, que se feriu ainda mais quando Flávia notou sua presença na janela da frente a observar aquele ato que era como um ponto final. Ela sorriu sarcástica e jogou o porta retrato na gaveta, sem notar que ao fazê-lo, aliviou um pouco a dor de Roberto, que pensou:

– Se ela colocou na gaveta e não jogou fora, é porque ainda sente algo por mim. – e sorriu de volta para ela com ainda mais sarcasmo.

Mas ela não entendeu o sorriso. Confusa, virou-lhe as costas e entrou para o banheiro com o celular na mão.

Roberto não se conteve e sacou o seu celular e mandou-lhe uma mensagem de texto dizendo o seguinte:

“Não adianta nem tentar me esquecer. Durante muito tempo em sua vida eu vou viver. Boa noite!”.

A confirmação do recebimento da mensagem não tardou a chegar ao seu celular, mas nenhuma resposta lhe foi enviada. Alguns minutos depois ela saiu do banheiro e foi até a janela, cara abusada e enfastiada, somente para fechar a persiana, vedando a visão de Roberto para o quarto.

Mas Roberto queria uma resposta, qualquer que fosse. Aquele gesto atrevido de fechar a janela significava algo, mas ele queria saber o quê exatamente. Foi quando lembrou do porta retrato e resolveu mandar outra mensagem:

“Você acha que esconder o porta retrato na gaveta vai resolver, Flávia? Ele é apenas um detalhe, um detalhe tão pequeno de nós dois. Mas você sabe, e eu sei, que existem coisas grandes que não dá para esquecer e que, por mais que tente, a toda hora vão estar presentes. Você vai ver…”.

Enviou e ficou a aguardar.

– Dessa vez ela terá que responder algo. Não é possível!

Mas um vazio se fez e Roberto terminou cochilando na sua cama sem ler uma mísera resposta de Flávia.

Alguns dias se passaram e a janela de Flávia continuava fechada. As persianas invariavelmente vedadas angustiavam cada dia mais Roberto, que ainda esperava por uma resposta qualquer dela. Todas as noites ficava de vigília na janela do seu quarto, celular na mão, contendo-se a muito custo para não enviar outra mensagem.

– Não vou me humilhar tanto assim! – pensava ele, quase teclando o número de Flávia para ligar.

Numa sexta feira à noite, Roberto estava em casa e viu que a luz do quarto de Flávia estava acesa. Fora isso, uma música tocava. Algo movimentado estava acontecendo ali e ele, como todos os dias, ficava de sentinela. Inquietou-se e chegou mais perto a fim de tentar ver alguma coisa. Nada viu. Alguns minutos depois, de forma totalmente inesperada, a persiana se abriu e Flávia apareceu, linda, e olhou para baixo com um sorriso. Antes de fechar a persiana, ergueu a cabeça e deu de cara com o semblante de Roberto parado na janela do seu próprio quarto. De repente o sorriso de Flávia esvaiu-se, e por rápidos instantes trocaram um olhar silencioso e melancólico. Roberto ficou paralisado, mas queria sorrir. Flávia, num gesto automático, sorriu-lhe simpaticamente, mas sem ternura. Era algo como um sorriso de amigo, nada mais. Ela fechou a persiana e saiu, deixando apenas um escuro depois que apagou a luz do quarto e do coração de Roberto.

Roberto viu que Flávia ia sair e, de imediato, olhou para baixo para ver tinha ido lhe buscar.

Em frente ao prédio ele viu um carro vermelho ligado fazendo muito barulho, muito parecido com o seu. Não dava para ver quem estava dentro, mas Roberto aguardou para saber se era mesmo aquele carro que vinha apanhar Flávia. Pelo tipo do veículo, Roberto deduziu que era de um homem, o que fez disparar de ciúmes seu coração. A resposta não tardou a vir. O rapaz saiu do carro para recepcionar Flávia logo que ela desceu a escadaria do prédio. A cabeleira dele era incrivelmente parecida com a sua, de modo que Roberto imediatamente pensou que era uma trágica coincidência em seu desfavor. O estilo da roupa, meio largado, também era algo que ele costumava usar.

Estupefato com aquele cenário, Roberto não se conteve e disparou uma mensagem:

“Se esse cabeludo que apareceu na sua rua lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua! Esse ronco barulhento do carro, essa calça desbotada, ou outras coisas assim, farão você lembrar de mim!”.

Flávia já estava dentro do carro com o homem que veio buscá-la, mas Roberto não ficou para vê-los se beijando e partindo para a balada de sexta feira à noite.

Dormir foi difícil, mais ainda por não ter recebido nenhuma mensagem.

A madrugada já dava seus sinais de falência quando o mesmo carro barulhento perturbou o silêncio da rua. Roberto apenas cochilava e levantou-se para ver pela janela, tomando o cuidado de deixar a luz apagada para que Flávia não visse que ele estava em casa e, pior, acordado àquela hora.

O carro parou na frente do prédio e ficou ali por alguns minutos. Depois desceu Flávia, apressada, e entrou no prédio. Mais algum tempo e a luz do quarto dela acendeu e Roberto a viu. Parecia feliz e já se deitava na cama com o celular na mão, futricando algo que lhe deixou verdadeiramente angustiado. Torceu para que fosse para ele, mas não era.

– Deve ser para o sujeito que acabou de deixá-la aqui. É, Roberto, acabou…

Num último suspiro, Roberto resolveu dar uma cartada que, se não fosse bem sucedida, serviria ao menos para sepultar de uma vez qualquer resto de esperança que podia alimentar. Mas o que dizer nesta hora? Não podia se humilhar mais, nem podia ser grosseiro. Teria que ser doce e afirmativo ao mesmo tempo. Então escreveu:

“Eu sei que outro deve estar falando ao seu ouvido, palavras de amor como eu falei, mas eu duvido que ele tenha tanto amor, e até os erros do meu português ruim, e nessa hora você vai lembrar de mim… Boa noite”.

Quando recebeu a mensagem, Flávia olhou para a janela de Roberto mas não o viu. A escuridão banhava o quarto dele, ocultando algumas lágrimas que desciam dos seus olhos tristes. Ela ficou a observar alguns segundo e, como que por pena dele, deixou as persianas da sua janela abertas e deitou para dormir. Mas Roberto continuava acordado e ficou velando o sono de Flávia.

Num dado momento da madrugada, Flávia, envolvida no silêncio do seu quarto, abriu os olhos e virou-se para o criado mudo onde ficava o porta retrato com a foto deles dois, mas não a encontrou. Sacou o celular e abriu uma foto que ela tirou com o homem com quem saiu naquela noite e ficou a fitá-la por alguns segundos. A aparência dele com Roberto era espantosa, e foi quando ela lembrou do sorriso do ex-namorado. Ela não deixou de sentir uma angustia, e dormiu com os olhos chorosos, deixando Roberto no quarto da frente com a mesma angustia e os mesmos olhos chorosos.

No sábado, Roberto acordou tarde e um pouco desorientado. Tinha marcado de sair com alguns amigos mas perdera a hora. Procurou seu celular e viu que tinha uma mensagem. Seu coração disparou e animou-se com a possibilidade de ter sido enviada por Flávia. Abriu a mensagem e viu o seguinte:

“Boa noite. Flávia”.

Levantou-se e viu que a janela de Flávia ainda estava aberta e ela deitada na cama. Não teve dúvidas e ligou. Roberto ficou em pé na janela, observando cada movimento de Flávia antes de atender o telefone. Viu seu corpo se remexer e as mãos massagearem os olhos. Flávia pegou o telefone com cara de sono e viu que era Roberto. Com o telefone na mão, virou-se para a janela e o viu postado com o aparelho no ouvido. Ela sorriu e atendeu a ligação:

– Alô?

– Oi, Flávia. Estava dormindo?

– Mais ou menos.

– A noite de ontem foi boa?

– Foi sim. E a sua?

– Nem tanto. Fiquei em casa.

– Percebi. E porque mandou aquelas mensagens?

– Eu vi daqui que você saiu acompanhada.

– Pois é.

– Já esta namorando?

– Ainda não.

– “Ainda não”?

– Não é o que você está pensando. É a primeira vez que saí com ele.

– Entendo… Pensei em você a noite toda…

– Roberto…

– Desculpe. Mas você não vai me dizer que não pensa nem um pouco mim, né?

Flávia silenciou por alguns segundo e o encarou pela janela. Agora ela estava de pé, olhando-o frente à frente, e então respondeu:

– Às vezes penso sim.

Roberto sorriu para ela e animou-se. Então disse:

– Então, Flávia, porque não voltamos?

– Porque não dá, Roberto.

– E como é que você vai namorar com outro ainda pensando em mim?

– Com o tempo passa.

Roberto chorou e nada disse além de um protocolar:

– Então adeus.

Desligou o telefone sem ouvir o adeus de Flávia e virou as costas. Desta vez foi ele que fechou as persianas do seu quarto, deixando-a observar o cenário vedado de um quarto inundado por melancolia.

Ainda com o telefone na mão, Flávia sentou-se a cama e ficou pensativa. Não sabia o que fazer diante daquela situação. Sentia algo que a angustiava e que não era apenas pena de Roberto. Soltou o celular na cama e abriu a gaveta onde estava o porta retrato. Olhou para ele com saudades e ouviu um alerta do seu telefone. Era uma mensagem de Roberto que dizia:

– Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada. Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada. Pensando ter amor nesse momento, desesperada você tanta até o fim, e até nesse momento você vai lembrar de mim! Seja bem feliz, Flávia. Adeus.

Ao ler a mensagem Flávia se debulhou em lágrimas e olhou para a janela, que continuava fechada. Ligou para Roberto, mas ele não atendeu. Mandou uma mensagem, mas ele também não respondeu. Dali há alguns minutos ela viu Roberto saindo do prédio e entrando no carro com alguns amigos. Desligou o celular e ficou no quarto a chorar.

Horas depois, sua mãe entrou no quarto e a encontrou entristecida. Preocupada, perguntou:

– O que houve, minha filha?

Flávia contou toda a história e ao final perguntou:

– Isso tudo passa, não é, mamãe?

– Sim, minha filha. Esses detalhes vão sumir na longa estrada, no tempo que transforma todo amor em quase nada. Mas “quase” também é mais um detalhe. Um grande amor não vai morrer assim. – A mãe de Flávia pegou o porta retrato que estava ao lado da cama, olhou atentamente e disse – Por isso de vez em quando você vai lembrar dele.

Flávia abraçou-se com a mãe por alguns segundos e depois limpou os olhos.

– Venha, minha filha, vamos almoçar.

– Vou tomar um banho e vou, mamãe.

A mãe de Flávia saiu e ela ficou sozinha no quarto. Olhou novamente para a janela de Roberto, mas ela continuava vedada pelas persianas. Guardou o porta retrato não na gaveta, mas num armário alto do guarda-roupa e caminhou para o banheiro. Antes, pegou o celular e abriu a primeira mensagem de Roberto e leu, imaginando que a mãe dissera a coisa certa:

“Não adianta nem tentar me esquecer. Durante muito tempo em sua vida em vou viver. Boa noite!”.

Fechou as suas persianas e entrou para o banho, tendo o cuidado de arquivar a mensagem numa pasta secreta da sua memória, depois de apagá-la do celular.
Série “MPB em prosa”.

Música: Detalhes – Roberto Carlos