Uma Questão de Sobrevivência
Por Ivenio Hermes
Condições de Servir
A atividade policial, ao contrário do que os seriados americanos propagandeiam ou algumas operações especiais deflagradas no Brasil costumam mostrar, não é assim tão elegante e charmosa, ela é cheia de percalços enfrentados a partir do momento da investidura no cargo e lotação no local de trabalho. Sua sedução e o apelo do poder investido pela profissão, é passageira e se acaba no momento que o servidor é desprezado pelo governo e pela sociedade que não reconhece seus direitos.
Para a mídia sensacionalista, a imagem de policiais corruptos, de policiais que cometeram erros ou que fizeram algo duvidoso, é um filão de ouro explorado quase diariamente em todo o Brasil.
Compreender a realidade que um policial enfrenta não é tão fácil como acompanhar as operações bem sucedidas (pelo menos até a efetivação das prisões e das apreensões) ou sair com uma câmera na mão mostrando (em versões editadas) as atividades de um grupo em uma ocorrência.
“O pior desrespeito é o desprezo e o esquecimento daqueles que mais deveriam se importar.” Esha Nehir
É necessária a convivência, a pesquisa “in loco”, a busca profundo por algo que ainda não está nas publicações. Essa área de estudo das ciências sociais carece de um envolvimento do pesquisador com problema, mormente um olhar desprovido de preconceitos e ouvidos atentos para perceber os detalhes vividos pelos agentes encarregados de aplicar a lei.
A insalubridade e o desrespeito ao servidor policial é algo comum e que se estabelece, infelizmente, pelo próprio desprezo de algumas administrações públicas que não procuram melhores condições de servir a sociedade.
Vítimas da Própria Profissão
O policial vive em constante alerta. Em seu cotidiano ele está diversas vezes envolvido com situações que demandam seu raciocínio rápido e dentro dos limites da profissão para tomar decisões que podem mudar a vida de muitas pessoas, inclusive a dele, de seus familiares e de seus colegas de trabalho.
Sem treinamento regular, sem condições de trabalho adequado, sem acompanhamento psicológico por um profissional que esteja inserido no sistema e sem reconhecimento, não poucas vezes, o policial é compelido a agir pela experiência ou pela necessidade iminente, tendo grandes probabilidades de cometer erros.
Se o agente já se sentia caído no ostracismo, sua realidade se deteriora ainda mais e as consequências são ruins para a sociedade, a instituição e a família. E essas vítimas da própria profissão nem sempre conseguem buscar ajuda adequada e passam a apresentar:
1- Insônia: a convivência com situações degradantes, com a miséria humana, com as possibilidades de conflito, fazem dos momentos de sono uma constante perturbação pelo sentido de alerta, e o resultado é a luta contra o sono e a insônia;
2- Depressão: sempre cobrado e quase nunca reconhecido, o agente perde a motivação para o trabalho e cai na depressão;
3- Dependência química: sem ajuda institucional correta, o apelo ao consumo exagerado de bebidas alcoólicas, remédios para dormir e outras drogas leva à dependência química;
4- Deturpação ou supervalorização da realidade: inserido numa profissão difícil, as poucas conquistas ou pequenos sucessos são supervalorizados e constantemente deturpados para gerar uma automotivação que dura muito pouco tempo;
5- Restrição de sociabilidade: a falta de realização no trabalho que ama, causa uma minimização dos círculos reais de amizade, restringindo-se aos colegas de trabalho (que geralmente só falam de trabalho) e alguns familiares mais chegados;
6- Agressividade e outros: o comportamento agressivo se manifesta como válvula de escape e outros comportamentos começam a aparecer.
Assim, a beleza da carreira policial é ofuscada pela escuridão imposta pela má utilização e cuidado com um profissional tão importante.
A Situação da 12ªDP
Não diferente de outros policiais de outras esferas de atuação e de outros estados, os policiais civis potiguares chegaram ao fundo do poço da desvalorização de sua profissão. Eles trabalham em número reduzidíssimo, mal armados, mal protegidos, em péssimas instalações, e precisando investir recursos próprios para melhor servirem a sociedade.
Foram apresentadas em outro artigo¹ as condições conservação da 7ªDP que está localizada no Bairro Quintas. Evitando que isso se repita em suas delegacias, os policiais civis da 12ªDP³, (poucos agentes, delegado e escrivão) que perderam as esperanças na administração pública potiguar, resolveram agir por conta própria.
1- Adquiriram um roteador de internet para poderem usar o recurso de WiFi num prédio sem estrutura de cabeamento;
2- Fazem rateio para manter a viatura funcionando, comprando peças e contando com os mecânicos da área para a manutenção;
3- Fizeram um planejamento do interior da DP e utilizaram divisórias navais como paredes (longe do ideal de segurança e privacidade, mas foi o meio que encontram) para terem suas salas de entrevista policial, sala do setor de homicídios, sala do delegado e outros ambientes necessários;
4- Efetuaram a reforma no “cartório”, que é uma cela improvisada para manterem seguros e limpos seus trabalhos e ainda mantém os computadores sempre em condições de uso.
A ausência da administração pública é sentida, entretanto, para seu próprio bem eles cuidaram do seu ambiente de trabalho.
No dia 18 de dezembro de 2012, quando nossa equipe de pesquisa chegou ao local, em uma das salas adjacente e sem porta, nos deparamos com um homem que estava saindo do banho, de roupa trocada e que era conduzido por um agente até uma mesa na qual havia uma refeição. Tratava-se de um cidadão que fora detido por desordem e que os agentes entenderam que seu delito fora provocado por causa da fome e abandono. O homem estava sendo tratado com uma dignidade exemplar, por policiais que são tratados indignamente todos os dias.
Inicialmente tivemos uma recepção pouco amistosa, pois fomos confundidos com repórteres que já estiveram lá e nada divulgaram sobre a situação da DP, mas assim que nos identificaram e entenderam a natureza de nossa visita, eles nos abriram todas as informações possíveis.
Um dos agentes confidenciou que eles convivem com tanta miséria naquela região que preferiram combater o crime da forma mais humana possível. O próprio policial, para suportar aquelas situações, só consegue relaxar e dormir em sua casa após tomar um ansiolítico, o Rivotril® (Clonazepam)².
Longe da lembrança da gestão pública, os policiais da 12ªDP buscam apoio mútuo e da comunidade para sobreviverem aos rigores da profissão.
Na 9ªDP a situação é semelhante³, entretanto, até conseguiram um pouco de investimento do poder público porque estão situados no andar superior de uma Casa de Detenção Provisória.
A equipe como sempre é reduzida, um delegado, um escrivão e dois agentes. O escrivão se encontrava de licença médica devido a um acidente, mas estava em seu posto de serviço repassando informações para o escrivão substituto, que é lotado na depredada 7ªDP. O senso de responsabilidade do policial de licença médica não o deixou largar o colega substituto sozinho.
O cartório, embora sem condições de segurança (suas paredes são de divisória naval e a porta de acesso do mesmo material) estava impecavelmente organizado e limpo, mesmo faltando estantes e computador, fruto do trabalho exclusivo dos policiais empenhados no serviço público.
A demanda pelos serviços de polícia na 9ªDP também é grande, e os policiais estão constantemente assoberbados com a média de 211 inquéritos policiais instaurados mensalmente.
O convívio com a CDP é algo a ser comentado:
1- A CDP conta com uma população carcerária que, segundo o único agente penitenciário de serviço e a diretora, é de aproximadamente 48 detentos, que são distribuídos em 3 celas, e que em sua grande maioria está preso por crimes contra a dignidade sexual;
2- O agente não possuía arma de dotação individual e a Escopeta Calibre 12 de uso comum, estava carregada com munições não letais e havia um punhado de munições letais, do tipo SG, reservadas para situações adversas. Uma prática fora de uso, pois na doutrina de Operações Controle de Distúrbios, munições letais devem ficar em armas especificamente separadas para evitar erros;
3- O agente penitenciário que trabalha em escala de 24 horas, enquanto a diretora em serviço normal, 8 horas diárias. Desestimulado por trabalhar sozinho, o agente aproveitava todos os minutos de tranquilidade para estudar para outro concurso público.
4- Além disso, a CDP conta com o apoio de dois policiais militares (desvio de função, pois estão fazendo o serviço de agentes penitenciários).
Nessa situação da CDP, para evitar o desvio de função dos policiais militares, que Estado do Rio Grande do Norte totalizam 834 homens cedidos para o sistema penal, seria preciso, no mínimo, mais dois agentes de plantão, num efetivo total de 16 agentes, isso sem contar com as eventuais licenças, férias e outros tipos de afastamento.
A 9ªDP e a CDP convivem no mesmo local. A delegacia sobrevive com poucos recursos e esquecida da gestão pública e a CDP, mesmo com os esforços do Juiz Henrique Baltazar para aumentar a segurança carcerária e as condições de encarceramento, continua com os mesmos problemas básicos de falta de efetivo.
São policiais e agentes penitenciários sendo pressionados dentro do limite de sua capacidade física, emocional e psicológica.
Felizes são aqueles que nada esperam de um Estado que não respeita seus cidadãos e seus servidores públicos, pois não correm o risco do desapontamento, da tristeza e da depressão.
O senso de autopreservação, o instinto de sobrevivência e o apego à vida estão presentes nos animais irracionais e racionais. Na atividade policial é algo que não pode ser desprezado sob a pena de perdas inestimáveis para o agente, seus colegas de trabalho e para a sociedade que espera desses homens nada além de proteção e serviço.
“Feliz do homem que não espera nada, pois nunca terá desilusões.” Alexander Pope.
Na doutrina policial costuma-se dizer que o perigo vem das mãos. É para as mãos dos suspeitos que se deve atentar, pois dela pode surgir uma arma de fogo, uma arma branca, uma tentativa de embate ou agressão.
Os encarregados de aplicar a lei no Estado Potiguar, entretanto, são ameaçados e colocados em perigo por mãos que não aparecem e que deveriam estar implementando políticas públicas de segurança e planejamento estratégico para mudar o atual estado de abandono e desprezo no qual foi jogada a segurança pública.
É o respeito ao servidor público e à sociedade que para quem convive com o perigo é uma questão de sobrevivência.
REFERÊNCIAS
¹HERMES, Ivenio. 7ª DP: Retrato do Caos: A História Que Não Divulgaram. Blog do Ivenio e Carta Potiguar. Disponível em: < http://migre.me/cGsP7 >. Publicado em: 23 dez. 2012.
²ROCHE, Produtos Químicos e Farmacêuticos. Rivotril® (Clonazepam): Bula Registro no M.S. 1.0100.0072. Produtos ROCHE Químicos e Farmacêuticos S/A.. Disponível em: < http://db.tt/edIrIniL >. Acesso em: 20 jan. 2013.
³HERMES, Ivenio. 12ªDP e 9ª DP – Problemas Enfrentados e Soluções Adotadas: Levantamento Fotográfico. Fanpage do Blog do Ivenio Hermes e Carta Potiguar. Disponível em: < http://migre.me/cTJst >. Publicado em: 20 jan. 2012.