Na frieza de uma sala de reuniões, Francisco e Júlia estavam frente a frente para discutir os termos do divórcio após o fracasso de um casamento de alguns anos. Não tiveram filhos, e o que se queria com aquela reunião era apenas o acerto final em seu aspecto patrimonial e a formalização jurídica do desenlace, já que no emocional, pelo menos no que toca a Francisco, só sobrou algum ressentimento; Júlia, apenar dos pesares, ainda guardava a esperança de um recomeço.
Os advogados constituídos por ambas as partes sorriam descontraídos e davam pinta que aquele seria um problema de rápida solução. Com esta certeza, o advogado de Francisco abriu os trabalhos.
– Então, senhora e senhores, parece-me que esta é uma questão de fácil resolução. Vejo aqui – e sacou uma folha de papel – que o único bem constituído durante o casamento foi um automóvel. Temos duas soluções para a divisão desse patrimônio: ou vendemos este automóvel e o dinheiro apurado é dividido entre os dois, ou um compra a parte do outro e fica com o bem.
O advogado de Júlia ouvia atentamente e respondeu, sorridente diante da simplicidade da solução e, para não ter mais trabalho, assentiu:
– Exatamente, doutor. Juridicamente é o que temos como opções. Cabe ao casal decidir o que melhor lhe cabe. – e olhou para ambos com um sorriso.
Júlia encarou Francisco com seus olhos verdes e brilhantes de lágrimas. Calou por alguns instantes e seu silêncio foi acompanhado pelos demais participantes da reunião. Francisco é que parecia gritar com sua mudez. Júlia via a indiferença em seu rosto e um grito de desespero invadiu seu coração. Mas não gritou para fora, a não ser com palavras trêmulas que disseram:
– Então é assim que termina, Francisco?
Francisco desta vez foi abalado com aquela frase que dizia exatamente o que era tudo o que se passava no momento: o fim. Sim, o fim dava as caras na forma de uma pergunta, pois até ali nada tinha sido dito que desse a exata descrição do ocaso do que antes fora um amor que nada podia destruir. Baixou os olhos e rabiscou num pedaço de papel. Voltou no tempo e tentou lembrar as indignidades que sofrera pelas mãos de Júlia a fim de não recuar na hora da decisão final, na hora de responder à pergunta que ela lhe fazia perante seus advogados que já contabilizavam os honorários recebidos. Novamente o silêncio pairou no ar e Francisco foi levado a fraquejar. No último momento, quando estava para dizer um “não” àquela pergunta poderosa, olhou novamente para Júlia e sustentou sua posição dizendo para seu advogado:
– Ela pode ficar com o carro.
Júlia baixou a vista e chorou. O silêncio desta vez fora demolido pelo fungado de um choro que era tanto de tristeza quanto de arrependimento. Ainda assim, ela perguntou:
– É só isso que você tem a dizer depois de tantos anos, Francisco?
Francisco pensou e respondeu, transbordando ressentimento diante do que ele encarou como cinismo da parte dela:
– Não, Júlia. Além do carro, vou lhe deixar esta medida do Bonfim que você me deu naquela viagem que fizemos à Bahia. – e apontou para a fita azul amarrada em seu pulso esquerdo – Lembra o que você me disse quando a amarrou no meu braço?
– Disse que ela lhe valeria quando a sorte se afastasse.
– Pois é. Mas não me valeu.
Júlia chorava ainda mais e não pôde responder. Francisco não prosseguiu com mais perguntas e disse:
– Fique com o carro e com ela também. Do que compramos juntos quero apenas o disco do Pixinguinha para me fazer companhia nos dias que se seguirão. O resto é seu.
Ao ver Júlia se debulhando em lágrimas, Francisco compadeceu-se dela, abatido pela compaixão ao ver alguém sofrendo diante de sua presença. Era doloroso também para ele, apesar de ter sofrido na pele algo parecido no passado recente. Queria dizer algo para consolá-la e para fazê-la ver que aquela era a melhor decisão a tomar.
– Não fique assim, Júlia. Veja que além dessas pequenas coisas nós temos algo a guardar. Lições. Guarde-as a fim de não mais incorrer nos mesmos erros. – Francisco parou de falar quando Júlia enfim o encarou. Ele então continuou – Trocando em miúdos, guarde as sobras de tudo que chamam “lar” e construa um novo por cima da sobra do que fomos nós. Apague as marcas de amor nos nossos lençóis e fique com as nossas melhores lembranças como recordação.
Júlia sentiu uma pontada de esperança quando Francisco falou em “nossas melhores lembranças” e achou que podia conseguir algo por aquela fresta que se abria em meio ao ambiente litigioso que pairava na sala de reuniões.
– Podemos revivê-las juntos, Francisco! São as NOSSAS lembranças. São os momentos em que fomos mais felizes e sabemos que podemos sê-lo novamente. Veja! – e mostrou a aliança no dedo de anular esquerdo – ainda uso ela, pois no fundo acredito que tudo pode voltar a ser como era antes.
A esta manifestação de Júlia, um dos advogados lembrou de tentar uma reconciliação do casal e reforçou:
– Sim, Francisco, temos sempre que buscar uma solução jurídica para o divórcio, mas se pudermos promover uma reconciliação é ainda mais interessante. Não é mesmo, doutor? – e virou-se para o advogado de Francisco.
– Sim, claro! Seria a melhor solução.
Francisco desta vez nãos mais baqueou diante das investidas de Júlia e dos advogados. As más lembranças ainda sobrepujavam as boas e ele já estava dominado por uma resolução firme. Foi então que ele disse:
– Essa esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer, Júlia.
– E esta aliança, Francisco? O que fazer com algo que me trás tantas recordações?
– Pode derretê-la, ou então empenhá-la no banco. Você precisará de dinheiro.
Francisco disse aquilo com uma certa dose de angústia, mas sem arrependimento. De fato se preocupava com Júlia e temia que ela passasse necessidade quando ele partisse de vez.
Júlia sentiu-se derrotada e nada mais havia a dizer a não ser uma observação:
– Tudo bem, Francisco. É mesmo o fim. Tudo me dói. A separação, esta reunião e todo o meu arrependimento, mas o que me assusta é que depois de tantos anos você fique tão insensível que não seja capaz de chorar, como se nada tivesse valido a pena.
Francisco e Júlia trocaram olhares e ela já havia enxugado os olhos quando ele respondeu:
– Ah!, guardo as boas e as más lembranças comigo e creio que saberei aproveitá-las cada uma da forma que for possível. Mas saiba que não vou dar isto que lhe parece ser um enorme prazer: me ver chorar. Além disso, não vou lhe cobrar pelo estrago que você deixou no meu peito, que é o mesmo peito que lhe deu amor e agora esta aqui, tão dilacerado.
O golpe foi fatal e começou a nascer em Júlia a chama do desamor. Por não mais ter o que dizer, informou:
– Amanhã mesmo procurarei um ourives para derreter isto. – e apontou para a aliança já fora do dedo e que ela colocava dentro da bolsa.
A animosidade que antes não existia passou a ter corpo e expressa nas palavras finais de Francisco naquela reunião:
– Ah!, pode ficar na casa, mas quando o dinheiro do ouro acabar, aceite uma ajuda do seu futuro amor para pagar o aluguel. Amanhã passo para pegar minhas coisas, inclusive aquele Neruda que você me tomou há um mês… e nunca leu!
Reunião encerrada, divórcio encaminhado e foram todos embora.
No dia seguinte, Francisco foi até a casa que era agora só de Júlia. Deixou a chave do carro em cima da mesa de jantar e recolheu suas roupas, o disco de Pixinguinha, o livro de Pablo Neruda, uma última cerveja da geladeira – a saideira – e saiu. Fechou o portão sem alarde e viu que Júlia o observava da janela. Era a última saída por aquele portão e não pôde deixar de sentir um golpe da saudade.
Já andando pela calçada e dando goles na cerveja, viu um casal cruzar seu caminho trocando carícias e pensou:
– Acho que já vou tarde…
P.S.: Da série “MPB em prosa”.