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Por que o medo do casamento gay e da adoção por homossexuais?

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papa-bento-xviNa véspera do Natal, período dito de compreensão e amor, o Papa mais uma vez decidiu por alimentar ódios e incompreensão. Em seu discurso à Cúria Romana, Bento XVI adotou uma retórica bélica ao se expressar em termos de luta e aliança entre religiões. E quem é este inimigo tão temido, cujo discurso beligerante e intolerante do pontífice evitou inclusive de pronunciar o nome?  Este inimigo impronunciável é os homossexuais, seu estilo de vida e suas reivindicações de igualdade e reconhecimento, em particular o direito ao matrimônio e à constituição de família por meio da adoção.

A despeito do quão preconceituoso, retrógrado e sem fundamento consideremos a opinião de Bento XVI acerca do casamento gay e da homossexualidade em geral, ele tem todo o direito de emiti-la e, com ela, de advertir o seu rebanho com respeito as regras e normas da fé católica a esse propósito. O que não quer dizer que tenhamos de abaixar a cabeça ou ignorar como se fosse tão somente um assunto moral para religiosos ou católicos. Não. É um assunto político, porque envolve a luta por direitos e o combate a estigmas, injustiças e opressões que envolvem e atingem pessoas e grupos que estão muito além da igreja católica.

Mas, por que a ideia de casamento gay ou de uma família formada por homossexuais assustam tanto o Papa e outros conservadores? O que eles temem para se empenharem de tal forma numa cruzada político-moral pra conter ou retardar a conquista desses direitos?

O debate acerca do casamento gay e da adoção de crianças por homossexuais colocam em questão os pressupostos morais pelos quais definimos o que é – ou deveria ser – de fato família e as relações amorosas. Portanto, não é simplesmente a homossexualidade em si que faz tremer os fundamentalistas e preconceituosos, porque muitos deles nem são assim héteros tão convictos, mas sim o que a homossexualidade, tornada pública e legítima como comportamento e identidade, realiza nas instituições e nas formas convencionais de praticar, viver e pensar a sexualidade, o desejo, o amor, o casamento, a família e a filiação.

Ora, o que incomoda não é uma relação homossexual, mas sim que esta seja compreendida e reconhecida como uma relação amorosa – afinal, assim pensa o preconceito, a homossexualidade é apenas sexo e promiscuidade, jamais amor e outros sentimentos “nobres e sublimes”. Negar o direito ao casamento significa uma tentativa de manter a homossexualidade restrita ao que seria o seu lugar legítimo: as “perversões” sexuais, o impulso irrefreável, a carne, o desejo. Seria um absurdo considerar que os casais homossexuais possam sentir mutuamente e devotar ao outro sentimentos sublimes como amor, confiança, fidelidade, cumplicidade, compreensão, estes seriam monopólios apenas dos casais héteros.

Da mesma maneira o casamento, o que inquieta não é a equivalência jurídica entre héteros e homossexuais nessa matéria civil. A indignação fundamentalista não deriva dos direitos à herança, de sustento ou os direitos patrimoniais, a que os casais homossexuais passariam a desfrutar com a parceria civil (casamento). O que irrita e atemoriza profundamente é antes o compartilhamento do reconhecimento social e da estima que uma instituição socialmente valorizada como casamento brinda as pessoas. É inconcebível para pessoas como Bento XVI partilhar com os homossexuais as benfeitorias simbólicas e sociais que somente o casamento confere . Como sabemos, na moral burguesa e cristã, o casamento é o lugar da consagração e da legitimidade das relações afetivo-sexuais, fonte de honra e realização pessoal que só possível na medida em que exclui e estigmatiza outras modalidades de relação, entre elas a própria homossexualidade.

Finalmente, a adoção ou a formação de família por homossexuais obedece a mesma lógica simbólica inferiorizadora e denegadora de igualdade de reconhecimento. Por que a família é negada aos homossexuais? Porque a família, em nosso imaginário cristianizado, é um lugar sagrado, nutrido pelos valores e sentimentos mais espontâneos e gratuitos. Refúgio emocional e imaculado, cuja meta principal não é outra senão a harmonia e a proteção das crianças, estes seres angelicais e frágeis. Ser pai e ser mãe significa manter-se incorruptível e doar-se ao máximo e incondicionalmente aos filhos e à família. Pai, mãe e filho, a família encena a trindade santa, sagrada. Por isso, formar família é uma tarefa, ou melhor, uma dádiva permitida por Deus, considerada sagrada e sublime. Assim, permitir tal dádiva divina a homossexuais, significa “macular” a família com pecadores, por pessoas que por seus “vícios” são condenadas por Deus e pela Bíblia. A isso, acrescente-se ainda todo o temor e reprovação moral acerca de uma prática que alguns padres católicos conhece bem; a pedofilia – outro dos mais estapafúrdios preconceitos colocados na conta dos homossexuais.

As aspirações de casamento e de adoção por homossexuais atemorizam não por conta da possibilidade real de equivalência jurídica entre héteros e homossexuais; mas sim porque essas aspirações trazem à possibilidade real de héteros e homossexuais dividirem e desfrutarem do mesmo reconhecimento social e do mesmo status de humanidade. Quer dizer, a heterossexualidade perderia o monopólio de todos aqueles valores morais, representações simbólicas e práticas que lhe conferem um estatuto moral e social superior, legítimo e natural em relação a outras formas de relacionamento e práticas sexuais. Portanto, admitir o casamento gay e a família formada por homossexuais tem um alto custo simbólico para a autoimagem e a compreensão moral do lugar privilegiado que a heterossexualidade possui em nossa sociedade e cultura. Eis aí, a essência do pavor conservador contra a homossexualidade.

A ideia de casamento gay significa um aprofundamento da igualdade de humanidade, pois ela amplia o escopo do que consideramos legítimo e verdadeiro em termos de relações amorosas e formas familiares, brindando reconhecimento social e estima  a um grupo de pessoas que até então permaneciam à margem, estigmatizados, inferiorizados, patologizados, ou seja, excluídos da legitimidade. É, nesse sentido, que o casamento gay, o matrimônio igualitário, é um avanço cultural e civilizatório para as nossas sociedades, pois ele representa uma ampliação inclusiva de nossas fronteiras morais. E, é exatamente essa ampliação e aprofundamento de nossas fronteiras morais, esse sacudir dos fundamentos pretensamente naturais, divinos e eternos, que incomoda e atemoriza os fundamentalistas religiosos e outros preconceituosos.

Graças a luta política e ao debate em torno dessas aspirações do movimento gay,  o amor, o casamento e a família são profanados, quer dizer, levados ao terreno da mudança, da história, da escolha, da política. E isso, é um ganho de liberdade, porque somente assim a sociedade e cada um pode ser interrogado acerca do que considera legítimo e aceitável. É quando começamos a pensar sobre nós mesmos que se inicia a mudança.