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Pelo direito de usar qualquer língua

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Tem um ucraniano com quem converso direto no Facebook. Quase sempre, ele consegue me tirar do sério, pelas opiniões absurdas que expõe sobre os idiomas (tanto os que conhece quanto os que não conhece). Cada vez que converso com ele, e cada vez que ele profere suas pérolas, não deixo de pensar no quanto isso me faz mal. O problema é que isso simplesmente está longe de fazer mal apenas a mim. Ora, vivemos no quinto país mais extenso em território do mundo, e um dos maiores em diversidade lingüística, ao lado de países como México, Índia, Papua Nova Guiné, Nigéria e Rússia. Na Índia, são 22 idiomas oficiais; na Rússia (Federação Russa, melhor dizendo), o russo é o idioma oficial, mas permite outros 26 idiomas co-oficiais. O único idioma oficial no Brasil, com 274 idiomas usados (muitos deles em vias de extinção), é o português – exceção feita a São Gabriel da Cachoeira (AM), que possui outros três idiomas oficiais. Temos, assim, um grande abacaxi lingüístico pra descascar – o que não quer dizer, necessariamente, que a Rússia e o México estejam tão melhores que nós. Pelo índice de diversidade lingüística de Greenberg, seu ranqueamento é baixo, pelo fato de que, em ambos os países (e no Brasil também), é gritante o predomínio de um idioma específico sobre os demais (russo e espanhol, respectivamente) (1).

 

Índices à parte, panoramas amplos à parte: voltamos àquilo que me incomodou efetivamente na conversa com o ucraniano (fora, evidentemente, outras bravatas que soltou ao longo desse tempo todo). O coitado se queixava de ter um resumo seu recusado. Era um evento na França, ele enviou o resumo em inglês, mas avisaram que só aceitavam em francês. Aí ele, inteligentemente (2), argumenta que o inglês é falado no mundo inteiro, que ele não sabe francês e não entende por que não aceitam a língua de Shakespeare (3). Retruquei comentando que ninguém é obrigado a usar o inglês o tempo inteiro (ou outro idioma que seja), e que é bom mesmo que haja eventos que priorizem publicações em tal ou qual idioma (especialmente se tiver baixo número de falantes), pois incentiva a manutenção de idiomas minoritários e promove uma realidade mais condigno ao ideal de democracia lingüística com o qual sonhamos (4). Seria interessante, por exemplo, ver um filme italiano dublado em inglês com legendas em espanhol num cinema turco. Fora de brincadeira, a grande questão é: que droga que comportamento de rebanho é esse, segundo o qual devemos adotar uma língua franca simplesmente por ser língua franca?

 

Abrirei um parênteses pra minha experiência pessoal no departamento. Dos idiomas estrangeiros que domino, é no inglês que minha proficiência é maior. Em parte, isso é devido à quantidade de material nesse idioma que encontro pelo mundo afora. No entanto, meu interesse pelo inglês (e pelos idiomas que conheço) está longe de ser devido a uma adoção cega ao colonialismo lingüístico. No que me diz particular respeito, aprendi de pura e espontânea vontade. Quando converso sobre o aprendizado de idiomas e me deparo com alguém que não curte o inglês, sempre encorajo a investir no idioma de sua escolha, mas procuro dissuadir ele do ranço contra o inglês (contra qualquer idioma, na verdade).

 

Parênteses fechados, voltemos. Um tempo atrás, comentei de minhas aflições com um conhecido que temos em comum. Ele respondeu que o ucraniano não diz o que diz por mal, que está realmente interessado em aprender (especialmente quando confrontado com argumentos convincentes), que eu levasse a coisa na esportiva… Mas não é isso que percebo. Não sei mesmo se daria certo ele cursar Letras (ou Ciências da Linguagem, como prefere Marcos Bagno), porque há gente de Letras (mais precisamente, da Lingüística) que defende uma abstenção do engajamento político na disciplina, limitada a uma pura descrição de seu objeto. Eu mesmo já testemunhei um episódio ridículo, que atesta o nível da falta de comprometimento dos estudantes de Letras com um engajamento político mais sério. Gente que nem mesmo ouviu falar na Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos! Um dia desses, conversando com uma amiga, comentou ela que, lá no Québec (ela tá pensando em ir morar lá), os imigrantes têm direito a um intérprete. Perguntei se isso tava previsto na Declaração (acabo de descobrir que tem), ela respondeu que nem conhecia o texto. Sintomático, não? Gostaria, então, de registrar minha queixa. Já pensou se, a cada vez que alguém tira sarro de tal ou qual língua, um falante dessa língua ficasse doente ou morresse? Acha exagero? Porque é basicamente isso que acontece. É muito fácil se queixar do uso de tal ou qual língua, ou recriminá-la por ser assim ou assado. Tá já na hora de parar com esse chilique todo (sim, o que o ucraniano faz é, essencialmente, um chilique, para além de qualquer implicação política ou lingüística que isso tenha). Um 2013 com menos preconceito lingüístico em nossas vidas, por favor.

 

(1) Um ranqueamento parcial pode ser encontrado aqui (outro, mais detalhado). Aqui, tem um texto bacana sobre as relações entre língua e pobreza, comparando alguns casos de exclusão e inclusão lingüística pelo mundo.

(2) Segundo os critérios dele, presumo.

(3) Mas nem os anglófonos falam a língua de Shakespeare mais. A língua de Shakespeare só existe nas obras dele, de seus contemporâneos e na King James’ Version da Bíblia.

(4) Maneira confortavelmente hipócrita de constatar que o único a sonhar, aqui, sou eu.