A cada novo massacre em escolas norte-americanas é inevitável a pergunta sobre como pode ser possível tamanha crueldade e perversidade. De imediato, e no meio da panaceia de informações dispersas e apressadas, a imprensa convoca os “especialistas do comportamento humano” na busca por alguma luz. Procuram-se respostas que aplaquem ou, ao menos, amenizem a dor, a tristeza e a revolta contra horrenda tragédia – que matou 20 crianças, de seis e sete anos, e seis adultos, entre eles a própria mãe do atirador. Assim, escava-se a biografia do assassino em busca das possíveis razões e desrazões que atestem o estado deteriorado de sua sanidade mental; os traumas de sua infância, a condição de suas relações com a família, com a escola e colegas. Juntos, em um esforço comum, jornalistas, psiquiatras, policiais, políticos e promotores, tentam montar o quebra-cabeça da monstruosidade do assassino, descrever o fundo obscuro de sua conduta criminosa e infame contra a sociedade.
Essa busca por respostas rápidas e diretas seguem na maior parte das vezes o mesmo roteiro: psicopatia, transtornos mentais, esquizofrenia, síndromes, etc.. Os diagnósticos e etiquetas de “anormalidade” e “doença” formam um perfeito casamento com o alarmismo, o sensacionalismo e a cultura do medo vicejantes da maior parte da imprensa – vide a entrevista com a psicóloga no último programa do Faustão, aqui.
Porém, essas explicações podem até satisfazer o clamor popular por respostas imediatas, mas, nem por isso, são as melhores respostas para entender o problema. A principal dificuldade delas reside no fato de restringir as “razões e motivações” do massacre a saúde mental do indivíduo, ou seja, de reduzir o episódio a um caso clínico e patológico qualquer. Essas explicações reducionistas deixam de lado os aspectos sociais e culturais que implicam toda a sociedade em episódios fatídicos como o de Newtown. A gênese dos transtornos, da barbaridade e da crueldade humana não é simplesmente natural mas se relaciona, também, com um tipo específico de sociedade.
Existem diversos elementos nesses massacres com armas de fogo nos EUA que indicam que eles são um fenômeno ou fato social – o que, ressalte-se, não exclui aspectos emocionais e psicológicos. Em primeiro lugar, a recorrência e a regularidade – pelo menos 62 assassinatos em massa desde 1982. Em segundo lugar, a distribuição geográfica; 30 dos 50 estados dos EUA já sofreram com tragédias semelhantes perpetradas por atiradores solitários. Em terceiro lugar, os cenários escolhidos: dos 62 casos, a metade ocorreu em escolas e locais de trabalho. Por último, o perfil dos atiradores; homens brancos e jovens, com histórico de isolamento e frustrações, dificuldades de relacionamento, sinais de distúrbios mentais e emocionais, etc..
Todos esses aspectos objetivos deveriam impedir que tratemos esses atentados como casos isolados, como se fossem tão somente eventos traumáticos particulares, fruto unicamente da ação de pessoas com problemas psiquiátricos, doentias, criminosas. Não estamos diante, simplesmente, de um caso policial nem exclusivamente psiquiátrico. Ora, os dados mostram um evidente padrão e a interação de outros fatores. Existe um conjunto de relações que precisam ser descobertas e discutidas, se quisermos entender como acontecem esses atos e crimes monstruosos e preveni-los – outro importante fator é o fácil acesso à armas de fogo nos EUA: parte significativa dos assassinatos em massa foram cometidos com armas “legais” e registradas. A identificação desse padrão social deveria ser suficiente para derrubar a ideia segunda a qual não se deve politizar episódios fatídicos e bárbaros, como o recente caso da escolar primária de Newtown.
Por que a escola e o ambiente de trabalho são, na maior parte dos casos, o cenário escolhido pelos atiradores? Ora, são nesses espaços que passamos a maior parte de nossas vidas como indivíduos; são nesses espaços que interagimos e sentimos o peso da sociedade, quer dizer, de seus valores, de suas práticas, de suas exigências, de seus preconceitos, de suas desigualdades. Por isso, o trabalho e a escola são, também, grandes fontes de mágoas e frustrações acumuladas. São lugares de estigmas, de exclusões, de ansiedades, de fracassos, de pressões, de solidão, de humilhações, de coerções, agressões, etc.. Todo um conjunto de sentimentos e memórias negativas e traumáticas pode ser identificado, de acordo com as biografias pessoais, com a escola e o local de trabalho. São, portanto, lugares de profundo sofrimento emocional para muitas pessoas – e nem todos conseguem lidar de uma maneira razoavelmente saudável com essas experiências. Por isso, que tais espaços são bem mais do que o palco ocasional e acidental dos massacres, eles são o próprio o alvo das descargas de ódio, de ressentimento e vingança dos atiradores.
Em tempos de capitalismo flexível, uma sociedade extremamente competitiva e individualista, como a estadunidense, é particularmente cruel com os mais introvertidos e todos aqueles que fogem aos padrões de “normalidade” socialmente valorizados. Os EUA, sobretudo, no trabalho e na escola, é caracterizado por uma sociabilidade com forte violência simbólica contra aqueles que não se enquadram nos ideais de sucesso social e êxito pessoal norte-americanos. As demandas e pressões por popularidade, sucesso social, independência, autonomia, autenticidade, flexibilidade são exigidas e sentidas desde cedo nos EUA, e de uma maneira visceral. Neste país, mais do que em qualquer outro, o sucesso e o fracasso, a felicidade e a miséria pessoais são depositados na conta do indivíduo; em seus méritos e esforços. Aos que conseguem o êxito, todas as honrarias materiais e simbólicas, e, aos “derrotados” e “esquisitos”, a vergonha, a indiferença, a exclusão e o rebaixamento que autoriza todo tipo de desrespeito e perseguição.
Nesse sentido, mais do que simplesmente as patologias individuais o que deve ser colocado em tela é o tipo de sociedade em que essas patologias individuais surgem e se enveredam por atitudes violentas e terroristas. No caso dos EUA, os desequilíbrios não são apenas individuais, mas sim, e fundamentalmente, da própria sociedade norte-americana em suas contradições, demandas e pressões sociais.
Portanto, em vez de simplesmente psicologizarmos e patologizarmos essas tragédias americanas, e daí cair na “solução” imediata da hipermedicação, da vigilância psiquiátrica-policial e no apelo pelo recrudescimento das leis, seria mais proveitoso e responsável politizá-las, isto é, pensar essas tragédias, também, em sua dimensão coletiva, em como os aspectos psicológicos, emocionais e psiquiátricos interagem com a forma de sociabilidade e cultura institucionalizadas pela sociedade norte-americana, em particular pela escola e o ambiente de trabalho. Será que essas instituições, e a sociedade norte-americana em geral tem oferecido as melhores formas de lidar, de relacionamento e integração de pessoas como Adam Lanza? A repetição dos massacres respondem por si só.
Fonte dos Dados:
http://www.motherjones.com/politics/2012/07/mass-shootings-map