Search
Close this search box.

Danuza Leão e o lamento dos ricos no Brasil

Compartilhar conteúdo:

Lula aprofundou o embate social e político entre “ricos” e “pobres”, criando, inclusive, como defende o cientista político André Singer, uma clivagem eleitoral nova na qual os mais pobres, no plano nacional, se liberaram do voto conservador para se aproximar, pela primeira vez na história do Brasil, de uma “alternativa popular”. O “realinhamento eleitoral” do qual nos fala Singer encontra paralelos também no mundo do consumo e dos consumidores. Assim como em outros setores da vida social, o movimento de ascensão social na esfera do consumo é acompanhado de conflitos, ressentimentos, reações e ataques por parte dos “estabelecidos e bem nascidos das classes médias altas tradicionais” do país.

A reação desta classe, tão visível nas estatísticas eleitorais e nas opiniões agressivas e preconceituosas contra Lula também é visceral e virulenta no âmbito do consumo. O último artigo da socialite Danuza Leão, “Ser Especial”, – aqui – publicado recentemente na Folha de SP, é um exemplo fragoroso. Ele traduz, de maneira cristalina, alguns dos incômodos dos círculos da high society com a ascensão social promovida na última década.

Para a colunista, “ser rico perdeu a graça” porque a exclusividade, o sentimento convicto de ser especial e privilegiado por desfrutar de bens e lazeres tão raros, finos e caros naufragou com os novos emergentes, que, parcelando tudo, passam também a consumir e a frequentar os espaços e os prazeres que outrora eram apenas e tão somente seus. Daí as boutades: “bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que só nos temos acesso; se todo mundo fosse rico, a vida seria um tédio”; ou, “(…) como se diferenciar do resto da humanidade, se todos tem acesso a absolutamente tudo, pagando módicas prestações mensais?”.

Na verdade, o lamento da socialite pela queda da aura de raridade e originalidade que antes envolvia as viagens à Paris e à Nova York ou possuir um jatinho particular mascara um duro golpe nas classes médias e altas, qual seja; o abalo no monopólio da distinção social, portanto, da caução de seu status e identidade social. Ora, se os signos marcadores de distinção social podem e são consumidos por outros, como então se diferenciar, e, assim, evitar ser confundido com a “ralé dos novos ricos e da nova classe média”?

Como ensinou o sociólogo francês, Pierre Bourdieu, as classes e posições sociais não se diferenciam apenas em função das condições econômicas, mas, também, pelos padrões de consumo, os gostos, as atividades de lazer, ou seja, pelos estilos de vida que cultivam e desfrutam. Se os bens de consumo funcionam como “cercas e pontes”, como pensava a antropóloga Mary Douglas, o problema, para as elites, é que algumas das “cercas” do consumo, que garantiam o sentimento de distinção e superioridade social, ruíram com a mobilidade social dos últimos anos, criando “pontes” indesejáveis para “pessoas indesejáveis e diferentes”.

“Ser rico perdeu a graça” porque já não é tão simples demarcar a diferença e a superioridade social em relação às camadas sociais que se encontram mais abaixo na pirâmide social. “Perdeu a graça” porque o abismo social, ou melhor, o apartheid social nacional diminuiu, e isto parece ser assustador para alguns abastados e privilegiados de berço, pois o convívio resulta agora mais aberto e menos homogêneo do que se gostaria.

O desespero decorrente do abalo no monopólio da distinção social toca mais profundo do que apenas o embaralhamento ou “democratização” dos sinais socialmente diferenciadores de classe, que tanto angustia atualmente as classes médias e altas no país. A distinção social não é somente uma forma de garantir o sentimento de diferença, de autenticidade e de superioridade social. Ele é também a base da identidade social dessas classes, na medida em que a distinção social forma um estilo de vida, ou melhor, o viver legítimo das classes abastadas.

A distinção social é uma arte de viver bem; viagens, roupas elegantes, culinária refinada, bons vinhos e coisas semelhantes. É esta arte que fornece o quadro de referência para que essas classes sejam enxergadas e se enxerguem na condição de classes dominantes, distintas e sofisticadas. O artigo de Danuza Leão exprime, com alguma ironia, é verdade, uma espécie de “crise de identidade” dos ricos cultivados no Brasil contemporâneo.

As mudanças sociais e o crescimento econômico, intensificados pelos últimos governos do PT, vieram “poluir” um mundo até então imaculado e fechado. Novos tipos de pessoas, de outros berços, ocupações e lugares, emergiram, com dinheiro e orgulho de seu sucesso, até cenários e atividades cuja mediação fundamental e distintiva é o “bom gosto”, “o refinamento”, “a cultura”, “a exclusividade”, “a classe”…

Durante muito tempo, as cercas do privilégio e da exclusão delinearam os traços mais firmes da identidade das classes abastadas e conspícuas brasileiras e, assim, asseguravam a pureza social e estética dessas classes pela garantia da quase ausência de interação com outras classes nos espaços privilegiados e distintivos de consumo. Agora, a antiga “ralé” sem classe se aproximou perigosamente dos “bens nascidos”, podendo ser vista caminhando lado a lado com as senhoras mais distintas nos mais caros shoppings paulistas ou nas boutiques parisienses à procura de bolsas Louis Vuitton.

Uma vez derrubadas as cercas, só resta o vazio, o recolhimento. Não à toa que a socialite arremata o fim do artigo, de maneira desolada, com a seguinte conclusão: “(…) trancar-se em casa com um livro, uma enorme caixa de chocolates, o ar-condicionado ligado, a televisão desligada, e sozinha”.

No entanto, é preciso ver mais do que lamento e ressentimento nas reações preconceituosas e elitistas como as expressadas por Danuza Leão em sua coluna. Essas reações são contundentes e sintomáticas a propósito de como nossas classes estabelecidas e abastadas nunca viram com bons olhos a mobilidade social. Mais ainda: demonstra, por um lado, sua dificuldade em lidar com a democracia em seu sentido mais amplo, social, como democratização das oportunidades, recursos, condições e espaços, e de outro, a ojeriza que elas devotam à alteridade e diversidade social – leiam este outro artigo da mesma Danuza Leão aqui. Desse modo, não é difícil compreender a guinada desses estratos sociais aos espectros e discursos mais conservadores nos últimos tempos.