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MPB em prosa: O Trem das Onze

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João era um sujeito de grande talento. Criador, extrovertido e fanfarrão. Portava-se de tantas maneiras distintas que seus amigos costumavam dizer que era um verdadeiro artista, um ator para ser mais preciso, a encenar todos os gêneros com a mesma maestria para deleite dos que com ele conviviam.

– E então, João? Qual o personagem de hoje?

Ao que ele respondia já com o personagem incorporado:

– Ah!, meus queridos e caríssimos amigos, hoje encenarei alguém magnífico. Uma personalidade realmente luminosa e digna de um aplauso eterno. Serei o Hamlet brasileiro! Um príncipe apaixonado que solta a voz a perguntar pela vida errante dos bares: Beber uísque ou cerveja, eis a questão!

Os risos ecoavam nas ondas da noite paulistana, e era deste modo que João passava a noite a divertir os amigos com falas solenes de um típico personagem do teatro de Shakespeare.

Noites e noites e ele a inventar algo novo, sempre de improviso. Dizia ele que se planejasse muito o nascimento de um personagem ele sairia meio torto, forçado, e, assim, sem graça e, no fim, sem vida.

Mas numa noite, um sábado, quando ele se encaminhava para o velho boteco do centro da cidade, viu no trem que o conduzia uma figura curiosa que logo chamou sua atenção. A roupa colorida, a maquiagem pesada e a peruca extravagante formavam a inconfundível figura de um palhaço. João fitou o homem enfeitado e notou que seu semblante não era digno de alguém que devota sua vida ao sorriso alheio. Estava triste, cabisbaixo, espremido no meio da multidão que pegava o mesmo trem de volta para casa. João não sabia se ele ia ou vinha do trabalho, mas a julgar pelo horário, sete horas da noite, era de se imaginar que devia estar indo para algum evento em que sua presença era requerida.

Durante todo o trajeto João ficou com a imagem do palhaço triste na cabeça, até mesmo depois que o animador de festa desceu na estação seguinte. De tanto pensar na tristeza do palhaço, João pela primeira vez teve a ideia de transformar-se num palhaço, contrariando seu costume de nunca planejar os personagens que encarnaria na noite com os amigos.

– Sim, serei um palhaço hoje! Mas um palhaço feliz, para dignificar e homenagear esses grandes homens que nos dão tanta alegria!

E seguiu tomado desta determinação.

Chegando ao bar encontrou os amigos festejando e ansiosos pela sua sempre animada entrada. Ao longe, um dos boêmios bradou:

– Eis que chega o nosso artista! Antes de tomar assento nessa mesa animada, diga-nos, João, daí mesmo, que personagem hilariante tens para nós hoje?

E foi quando João colocou seu chapéu de lado, arqueou as sobrancelhas, abriu um sorriso e disse em alta voz e com os braços bastante abertos:

– Quem é o homem que nos dá o riso como presente? Quem é o homem que dá o sangue pela alegria? Quem é o homem que sorri, mesmo quando quer chorar? Olhem mais de perto, queridas crianças, olhem e contemplem o palhaço da madrugada!

E chegou para perto da mesa com o mesmo semblante, esperando os aplausos.

Porém, diferente do que costumava acontecer, quando os brados de aprovação eram abundantes, desta vez a reação foi tímida, quase silenciosa, a não ser por um aplauso fraco que foi ofertado por uma moça nova que estava na mesa com a turma. João não era um palhaço engraçado.

João sentiu que não agradou, mas mesmo assim disfarçou e sentou-se à mesa sem demonstrar insatisfação. Os amigos como que deixaram de lado o novo personagem e falaram de assuntos diversos.

Ciente de que não tinha alegria como palhaço, João pelo menos ficou satisfeito por ter arrancado o aplauso daquela mocinha que estava ali. Os olhos dela não saíam da direção de João, que retribuía a simpatia da moça com um sorriso maroto. Tomou mais alguns goles de cerveja e decidiu que era hora de agir. Pediu a um amigo que estava ao lado dela para trocar de lugar e começou a conversar. Antes de falar, acomodou-se na cadeira e estava a ajeitar o chapéu quando a moça segurou seu braço, impedindo-o.

– Não. Deixe-o assim. Está muito charmoso.

João encarou a moça com um sorriso sensual e lentamente devolveu o braço para seu lugar, deixando o chapéu inclinado.

– Qual o seu nome?

– Helena.

– Muito bem, Helena. Vejo que pelo menos alguém gostou do personagem desta noite…

– Gostei sim. Embora deva lhe dizer que em nada parece com um palhaço.

Os dois riram com cumplicidade e engataram uma animada conversa pelas horas seguintes, que terminou com beijos ardentes num local reservado do bar.

As horas se passaram enquanto João e Helena se entregavam a uma noite de paixão.

O relógio bateu dez horas quando João disse:

– Tenho que ir, minha querida Helena, alegria da minha noite.

– Mas já?

– É que tenho que pegar o trem e…

E Helena interrompeu sua fala com mais um beijo. De repente o tempo passou a não mais preocupar João, que estava totalmente entregue aos beijos ardentes de Helena.

Às 10:30h, João mais uma vez olhou para o relógio e fez menção de ir embora.

– Agora tenho que ir.

– Mais uns minutinhos!

Dizia Helena, e abraçava João em novos beijos prolongados.

O relógio apontava 10:50h quando João se levantou e já se despedia dos colegas de longe com um aceno, enquanto falava para Helena:

– Vou indo.

– Por que tão depressa?

Mais um beijo, e mais dois minutos se passaram: 10:52h.

Eis que João, com alguma preocupação oculta, disse:

– Não posso ficar nem mais um minuto com você, Helena.

– Mas por quê?

– Sinto muito, amor, mas não pode ser.

– Algum problema?

João franziu o cenho e disse:

– É que moro em Jaçanã, e seu perder esse trem que saí agora às onze horas, ah!, querida, só amanhã de manhã é que vou para casa.

– Ora, mas que besteira! Durma por aqui mesmo. Está muito tarde para você ir embora agora.

João ficou tentado a aceitar o convite de Helena. Uma noite de amor com aquela mulher sensual seria maravilhoso. Acordar ao lado dela no outro dia, ficarem juntos, enfim, tudo apontava para que aceitasse o convite. Olhou para ela como se fosse dar o “sim” que ela queria, mas num átimo estancou e disse, como que por impulso:

– Não posso ficar.

– Dê-me uma boa razão, então.

João desviou o olhar e disse, meio envergonhado:

– É que minha mãe não dorme enquanto eu não chegar…

– Que fofo! Mas você não tem irmãos que possam dormir com ela?

– Não. Sou filho único e minha casa fica num local afastado, quase deserto, e por isso tenho que olhá-la.

Helena visualizou a bondade na alma de João e não disse mais nada naquele momento. Beijou-o e afastou-se do seu corpo. Ele, num último suspiro de tristeza por ter que ir, disse:

– Não posso ficar…

Deu as costas e partiu. Quando já ia longe, ouviu Helena dizer:

– João!

Ele virou-se e ela continuou:

– Que tal uma gravata borboleta para completar a fantasia de palhaço da madrugada?

Ele sorriu e foi para a estação pegar o trem das onze, determinado a adotar a gravata borboleta no traje do personagem que agradou apenas àquela doce Helena que fez sua noite de palhaço ser verdadeiramente animada.

 

P.S.: Episódio anterior: A garota de Ipanema https://https://https://https://https://https://https://https://cartapotiguar.com.br//wp-content/uploads/2024/05/temp-podcast-05-2.png.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/05/temp-podcast-05-2.png.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-1.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca.jpg.com.br/novo/2012/11/15/a-garota-de-ipanema/