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Cotas raciais e a falácia da meritocracia

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Montagem sobre a obra de J. Baptiste Debret, Regresso de um proprietário. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – 1834 – 1839.

A meritocracia é ainda hoje a cereja do bolo do senso comum individualista, concentrando nos indivíduos toda a responsabilidade por suas vitórias, pelo que são, pelo que deixam de ser e por seus júbilos profissionais, acadêmicos e pessoais. A mesma lógica ocorre, naturalmente, no que diz respeito aos seus fracassos propriamente ditos.

Com efeito, variáveis das mais diversas que costumam influenciar nos destinos das pessoas, coletiva ou individualmente, costumam ser plenamente desconsideradas. Desconsidera-se, assim, o contexto social, político e econômico no qual estão inseridas a sociedade e as metas estabelecidas por este senso comum como sinônimos de realização e sucesso. Nas hipóteses em que tais fatores são levados em consideração, o são por meio de uma perspectiva lamentavelmente reducionista, ganhando a pecha de, tão somente, obstáculos a serem superados, óbices a um futuro alvissareiro cujo sol se reserva a resplandecer sob a cabeça de todos os bem-aventurados que, com o seu suor, lograram êxito em suas epopeicas jornadas de realização pessoal e profissional.

O fracasso e a vitória passam a ser debitadas unicamente na conta do sujeito, vitorioso ou fracassado, na mesma intensidade tanto para o cidadão “bem nascido” como para aquele que, primeiro dos sete filhos de uma mãe solteira que trabalha dezesseis horas por dia para sustentar sua prole, tem que se virar entre estudar e trabalhar.

O que acontece também é que esta senhora e seus filhos são, na maioria absoluta das vezes, pessoas de pele escura (segundo dados de pesquisa recente do IBGE, 70% da população pobre é negra), pessoas cujas agruras diárias são frutos diretos de um processo quatrocentenário de exploração, abusos e de toda sorte de humilhações decorrentes do regime escravocrata a que seus antepassados foram submetidos.

Óbvio que é admirável quando alguém, imerso em circunstâncias de dificuldade e hipossuficiência tais quais as aqui relatadas, consegue ser financeira, pessoal e profissionalmente bem sucedido (nos ditames do senso comum, obviamente). Resta a dúvida, porém: não se trataria de uma exceção, carregando consigo a premissa maior das exceções, qual seja, a de confirmar a regra? A título de exemplo, quantos ministros do STF negros tivemos antes de Joaquim Barbosa (entusiasta, por sinal, da constitucionalidade da política de cotas)? O problema estaria, majoritariamente, na simples falta de esforço, ou nos fatores sócio-econômicos abordados anteriormente?

Individualizar responsabilidades, vitórias e fracassos em uma desigual sociedade como a nossa, onde os serviços públicos essenciais dos quais depende a população mais carente, como saúde, lazer e principalmente educação são bastante precários, é reconhecer, implicitamente, que o Estado vem arcando satisfatoriamente com suas funções constitucionais em prover as necessidades mais básicas da população, tendo todos as mesmas oportunidades vez que também a todos foram igualmente garantidos todos os meios de alcançarem suas aspirações vocacionais. Se não o fizeram, lamento, pois certamente não se esforçaram o suficiente. Nada mais falacioso.

Experiências individuais consubstanciadas em exceções não podem – nem devem – servir de parâmetro para a discussão de políticas públicas, afirmativas e de inclusão social. É nesse exato contexto, a propósito, que se evidencia a importância da aplicação política de cotas raciais no Brasil.

Primeiro, pelo fato da situação do negro em nosso país ir além – muito além – das questões puramente econômicas (direciono-me, aqui, aos que defendem as cotas sociais como suficientes para solver e abarcar a questão racial). Não é uma situação financeira minimamente confortável que irá apagar os contundentes vergastes oriundos destes intensos quatro séculos de abjeta escravidão onde o Estado foi protagonista de uma obscena e desumana política institucional de degradação física, moral e psicológica da população negra. Trata-se aqui de indeléveis efeitos que, involuntária e culturalmente, se enraizaram na autoestima dos afro-brasileiros, efeitos que ainda persistem na atualidade, visto que vítimas de intensa discriminação mesmo nos dias de hoje independentemente da classe social a que pertençam.

A democracia racial, tão festejada pelos defensores do establishment, não passa de um mito insuflado pela ideia quixotesca de que o branco e o negro no Brasil partem do mesmo lugar. A estética negra é combatida e ridicularizada, direta ou indiretamente, enquanto os padrões eurocêntricos ainda são perseguidos como ideais. Basta ligar a TV ou folhear revistas de grande circulação.   O Estado brasileiro, conforme observado, é historicamente um dos grandes fomentadores da exclusão e de estereótipos negativos no que diz respeito aos negros. Nesse sentido é que recorro a dois emblemáticos exemplos que a literatura nos dá, mostrando como, diante dos nefastos exemplos históricos que temos à mão, é importante que o os negros hoje se reafirmem como tal.

Lima Barreto, em Os Bruzundangas, relata a preocupação de alguns órgãos públicos em limar dos seus quadros candidatos e servidores negros ou mestiços, aos quais se refere como de “origem javanesa” (o próprio escritor, é bom que se diga, sofreu as dores de ser mulato em uma sociedade pós-escravocrata, experiência relatada no ótimo Recordações do Escrivão Isaías Caminha):

“O mesmo não se pode dizer da Marinha. Ela é estrictamente militar e os seus oficiais julgam-se descendentes dos primeiros homens que saíram de Pamir. Não há neles a preocupação de constante mudança de fardamento; mas há a de raça, para que a Bruzundanga não seja envergonhada no estrangeiro possuindo entre os seus oficiais de mar alguns de origem javanesa.

[…]

A sua atrapalhação estava na tal história do concurso, pois até ali, devido a tão tola formalidade, não conseguira ter nos cargos de amanuenses moços bonitos e demais, para fazer concursos, sempre apareciam uns rebarbativos candidatos de raça javanesa, com os quais ele embirrava solenemente.

Da última vez, até, quase que um atrevido javanês puro consegue o primeiro lugar, tal era o brilho de suas provas; Pancome, porém, arranjou as cousas tão lealmente diplomáticas que o rapaz perdeu a última prova.

Não queria que a cousa se repetisse e estudava o modo de, evitando o concurso, encontrar um candidato bonito, bem bonito, não sendo em nada javanês, que pudesse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou do Afeganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga”.

Nessa esteira, o uruguaio Eduardo Galeano, no seu excelente Futebol ao Sol e à Sombra, descreve, tomando por base a história do centroavante mulato Artur Friedenreich, a mesma preocupação do Estado brasileiro em mostrar ao exterior ser uma nação eminentemente branca:

“Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, baixou um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que jogou, a seleção branca perdeu duas.

Nesse campeonato sul-americano Friedenreich não jogou. Naquela época, era impossível ser negro no futebol brasileiro, e ser mulato era difícil: Friedenreich entrava em campo sempre tarde, porque no vestiário demorava meia hora esticando o cabelo, e o único jogador mulato do Fluminense, Carlos Alberto, branqueava a cara com pó de arroz”.

Veja que há menos de cem anos “decretos de brancura” eram editados pela Presidência da República.

Se hoje esse mesmo Estado adota um comportamento de inclusão via políticas afirmativas de combate ao preconceito e à discriminação tanto em seu âmbito institucional como nas relações particulares, é por que possui um naco considerável de responsabilidade pela intensa discriminação que ainda vige, co-responsável que é pela disseminada cultura do racismo, embora esta hoje se manifeste de maneira mais velada do que ontem.

Segundo, falar em investimentos em educação pública como única e ideal política de substituição das cotas raciais é válido, mas não crível. A política de cotas tem, de fato, um viés paliativo. Contudo, na condição de investimentos a longo e a médio prazo, qual a expectativa de quando enfim poderemos nos regozijar de termos uma educação pública satisfatória uma vez que, há pouco mais de uma semana, a Câmara dos Deputados presenteou-nos com uma acachapante votação contrária à proposta de destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação?

Submeter os espoliados de um ensino básico e fundamental de qualidade à incerteza de um futuro onde não será mais necessário pagar escolas particulares para ter acesso a uma educação satisfatória é relegá-los a um verdadeiro deus-dará, sem qualquer previsão de quando tais investimentos de fato serão feitos de acordo com as verdadeiras demandas da sociedade. Enquanto isso, gerações e gerações se perdem nesse sebastianismo sem sentido que mais serve para manter as coisas como estão.

Mas que fique claro: o ideal, evidentemente, é de fato um ensino público universal e de alto nível, sedimentado em planos político-pedagógicos alinhados com as realidades regionais do país e que contenham recortes de cor, raça, gênero, orientação sexual e religião. Políticas afirmativas como as cotas devem se manter incólumes até que o Brasil, este contumaz e birrento adolescente que insiste em bater de frente com a sua própria história, enfim amadureça nos pontos aqui discutidos. Até a superação cultural, social e econômica do racismo, as cotas permanecem imprescindíveis para o atingimento de uma isonomia verdadeiramente substancial entre os cidadãos e cidadãs brasileiros, e não apenas uma isonomia formal, cujos resultados costumam fatalmente descambar em indecorosas e constrangedoras injustiças.

Por fim, reproduzo trecho de excelente artigo de Leonardo Sakamoto, “Educação é a saída, mas professor é visto como entrave”, que traduz com exemplar objetividade a síntese do ideário conservador que teima em deslocar as discussões da esfera pública para a privada enquanto solução para problemas que atingem milhões de pessoas penalizadas pela insuficiência do Estado em cumprir com suas funções constitucionais:

“Por fim, estou farto daquele papinho do self-made man cansativo de que os professores e os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual, apesar de toda adversidade, “ser alguém na vida”. Aí surgem as histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de lama com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”. Passando uma mensagem “se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo”.