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Ecos da tortura política em Aracaju

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Por Luciano Oliveira (Prof. de Sociologia UFPE)

Publicado em Amálgama: Atualidade & Cultura

“Era o fim da tarde de uma sexta-feira e nós tínhamos um encontro marcado no bar. ‘Nós’ era um grupo de amigos que frequentavam a Faculdade de Direito de Sergipe, bebiam cerveja e liam Politzer. Naturalmente éramos todos de esquerda e fazíamos oposição ao regime militar que, nessa época, já começava a se desagregar. Não éramos propriamente heróis e a crônica de nossas ações não comporta nenhuma epopeia. Militávamos no partido de oposição legal, o MDB, líamos os livros proscritos, fazíamos política estudantil e, toda semana, renovávamos o jornal mural da faculdade. Alguns de nós, mais ousados, já tinham pichado nos muros da cidade um desses ‘Abaixo a Ditadura!’ que surgiam à noite e que de manhã eram rapidamente apagados pelos funcionários municipais. Outros tinham ligações com o clandestino PCB. Corria mesmo a boca pequena que um próximo da turma já havia feito um curso de marxismo-leninismo em Moscou… Mas era tudo. De repente a má notícia explodiu no bar: um dos colegas com quem tínhamos encontro havia sido preso! A menos de 40 metros do local onde estávamos, um policial tinha-o ‘convidado’ a seguir até uma delegacia, alegando uma história de cheque sem fundos. Mas na delegacia, para onde nos dirigimos rapidamente, ninguém estava sabendo dessa história. Logo compreendemos o que estava se passando, tanto mais que, nas horas seguintes, tomamos conhecimento de que outras pessoas do nosso meio (advogados, estudantes, líderes sindicais etc.) haviam recebido o mesmo ‘convite’. Começamos então a correr de um lado para o outro para as providências de praxe: prevenir uns, pedir socorro a outros, avisar as famílias e – por via das dúvidas – tratar de arranjar um lugar para se esconder. Às três horas da manhã me despedi do colega com quem tinha corrido a cidade e acertamos nos encontrar no dia seguinte para, junto com o grupo, ver o que fazer. Eu fui me esconder e ele foi para casa, dirigindo o próprio carro. No dia seguinte, no horário marcado, ele não apareceu. Fomos até sua casa. Mas, como informou sua família, desde a véspera ele não tinha voltado. Tinha sido preso. Desapareceu sem deixar nenhum traço. Ele e o carro! Uma semana depois, ambos reapareceram.”

O longo parágrafo acima é a transcrição literal do início de uma tese de doutorado que defendi em 1991 sobre os direitos humanos, a tortura e o pensamento político da esquerda brasileira, assunto a que fui levado pelo que aconteceu em Aracaju no fim de semana que antecedeu o Carnaval no ano agora longínquo de 1976, quando as forças de repressão da ditadura militar sequestraram, encapuzaram e levaram para o 28º Batalhão de Caçadores, a famosa “colina”, uma boa trintena de opositores do regime. Todos, nos dias que se seguiram, foram torturados. Quando reapareceram, tinham os cabelos cortados no estilo “recruta”, os barbudos tinham perdido a barba e, detalhe sinistro, todos tinham um pequeno ferimento na concavidade do alto do nariz, entre as sobrancelhas, sequela de uma apertada máscara de borracha que lhes tinha sido aplicada no ato da prisão e que foram obrigados a usar durante o “interrogatório” que durou dias e noites intermináveis. Eram acusados de tentar (imaginem!) reorganizar o Partido Comunista Brasileiro, o famoso Partidão, que sempre fora contra a luta armada contra o regime…

Essa dolorosa lembrança, que me perseguiu durante anos, volta agora à lembrança no contexto do processo que se desenrola em Aracaju neste momento, opondo o médico José Carlos Pinheiroe um grupo de estudantes que promoveu, meses atrás, uma encenação de atos de tortura na frente do Hospital Santa Isabel, onde trabalha, acusando-o de prestar seu saber profissional aos torturadores. Com efeito, ele (ou qualquer outro médico) que tenha estado naqueles desvãos do inferno naqueles dias e noites, não deve ter “posto a mão na massa”. Seu papel teria sido “apenas” o de coadjuvante, verificando se as condições físicas dos presos ainda permitiam novos choques. Era fevereiro de 1976, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho já haviam sido “suicidados” no DOI-CODI paulista e Geisel havia demitido sumariamente o comandante do II Exército, sob cuja jurisdição os “suicídios” ocorreram. Os torturadores, ainda que desafiando o presidente e sua política de Distensão, provavelmente também receavam sua mão prussiana e não queriam que novos “acidentes de trabalho” ocorressem. Daí a presença de médicos nessas sessões sinistras. É o que suponho.

De toda forma, é uma acusação muito grave. “Quem de qualquer modo concorre para o crime, incide nas penas a ele cominadas” – diz um artigo do Código Penal, se ainda me lembro das aulas da professora Juçara Leal. E assessorar torturadores é concorrer para seu abjeto ofício. O assunto está sub-júdice, e acho prudente esperar o desenrolar dos acontecimentos. Afinal, deve-se reconhecer que José Carlos Pinheiro tomou uma atitude em que não faltou coragem: denunciar seus acusadores à justiça pelo crime de calúnia. A coragem reside no fato de que tal crime admite o que o mesmo Código chama de “exceção da verdade”: ou seja, os acusados podem diante da justiça arguir que não cometeram calúnia, trazendo provas de que os atos que denunciaram são verdadeiros. E pelo menos um dos torturados, o ex-vereador Marcélio Bonfim, repetindo denúncia que já fizera no plenário da Câmara de Vereadores em 1989, anunciou publicamente que está disposto a ir à audiência encarar o médico. Devemos esperar para ver como tudo isso vai terminar. Independentemente do desfecho, porém, o fato é da maior relevância jurídica e política. Em Aracaju, neste momento, desenrola-se mais um episódio da interminável história da violação dos direitos humanos durante o regime militar, e o atual capítulo, para nosso contentamento ou desolação, tem uma importância que vai muito além das nossas pequenas fronteiras.

Como quer que seja, fica a maior lição de tudo isso: os atos que hoje em dia pipocam no Brasil, denunciando as torturas durante o regime militar, não são mera manifestação de revanchismo, como os militares gostam de dizer. Eles se nutrem do fato de que a tortura – que em essência significa infligir dor num corpo imobilizado – é certamente a ação mais vergonhosa que um ser humano pode cometer. É tão horrorosa a perspectiva de ser torturado que até Jesus Cristo, que morreu num instrumento de tortura, na véspera das provações por que iria passar chegou a pedir ao Pai que o afastasse daquele Cálice – cálice que o apóstolo Paulo, que tinha a cidadania romana, preferiu não beber. Quem quer que leia os Atos dos Apóstolos (22; 23-29) verá que o maior divulgador do cristianismo, prestes a ser enviado por um tribuno a uma sessão de açoites para que se descobrisse por que a multidão vociferava contra ele, apelou ao centurião encarregado de cumprir a ordem: “É permitido açoitar um cidadão romano?” Não era, e ele se safou! Definitivamente, a tortura é um ato que deixa marcas para sempre: na carne de quem a sofreu, certo, mas também nas mãos de quem a praticou.