Às margens do verde mar de Galinhos, um potro rebentou, nascido no seio de uma família de cavalos e éguas abnegados em oferecer a força de seus membros em prol de outra família, esta de humanos, que ofereciam também membros, os superiores, para guiar turistas pelas ruas da pequena cidade litorânea em coloridas charretes.
Nasceu e logo descobriu o que era o mundo com uma queda, e quando sua mãe ainda lambendo o resto de líquido uterino que o envolvia foi chamada para a função pelo carroceiro.
– Resguardo é para mulheres! – bradou o carroceiro, chefe da família de humanos.
– O que é isso, homem! Deixe a bichinha descansar! – falou suavemente sua esposa, mãe de quatro filhos e sapiente do que é um parto.
O carroceiro resmungou qualquer coisa e saiu contrariado, embora ciente de que a mulher tinha razão.
Voltemos ao potro, agora já quase limpo pela diligente mãe.
Os olhos já abertos divisavam a imensidão do mar, o mar que jamais entraria. Sentia uma brisa fresca bafejar-lhe o pêlo úmido e sujo de areia branca, fazendo eriçar a penugem finíssima de recém-nascido. A mãe, uma égua experiente tanto na arte de puxar charretes quanto na de parir potrinhos, empurrava o pequeno com o focinho para fazê-lo levantar.
Foi quando pela primeira vez o instinto deu o ar de sua graça. Ergueu as longas e finas patas traseiras e as apoiou na areia fofa. Uma tremedeira quase o derrubou, mas sua mãe estava lá zelando pela sua postura. Apoiado atrás, sentiu respaldo para erguer-se por completo, sustentando o pouco peso do seu corpo sobre as quatro patas que Deus lhe deu. Ainda tremendo e pouco certo de como fazer aquilo, o potrinho andou. Não havia outra direção para ir: o úbere de sua mãe, cheio, repleto de leite gorduroso para preencher o espaço entre os ossos e a pele. Mais uma vez o instinto falou-lhe aos ouvidos, indicando o caminho a seguir. Agarrou uma das tetas e sugou com força o alimento materno.
Pouco tempo depois, o potrinho já estava saltitando e explorando o mundo praiano, ainda na zelosa companhia de sua mãe, que, vigiada pela matriarca daquela família de humanos, ganhou alguns dias de descanso do trabalho de puxar uma charrete.
Entre um salto e outro, o potrinho sorvia litros de leite do peito de sua mãe, ganhando vigor e força nas pernas para andar sobre a areia de praia. A musculatura robustecia, enquanto o pêlo, salgado pela maresia, endurecia com o calor do sol litorâneo.
Logo o potrinho viu sua mãe voltar ao trabalho, ocasião em que acompanhou todo o ritual. O chefe da família, carroceiro experiente, paramentava-a toda para o serviço. Sela, arreio, bridões, estribos, freio, viseira, cangaia, e, ao final, a charrete cor de rosa que puxaria durante um dia inteiro. O potrinho achou aquilo tudo muito interessante e resolveu que seguiria sua mãe em um dia de trabalho. Ademais, sentiria fome, e estando perto dela o alimento jamais lhe faltaria.
Durante todo o dia o potrinho fez um mesmo trajeto, do trapiche onde atracavam os barcos com os turistas, até a praia aonde eles, transportados pelo carroceiro e sua mãe, iam para se deliciar com as maravilhas naturais e culinárias de Galinhos.
Duas linhas retas intervaladas por uma curva e chegava-se ao ponto, ao custo de R$ 5,00. No caminho, o potrinho chamava a atenção dos turistas que montavam a charrete, fazendo-os sacar de suas máquinas fotográficas para registrar aquele animalzinho adorável. Ele, o potrinho, não se fazia de rogado e pulava folgadamente, e mesmo o carroceiro, carrancudo diuturnamente, sorria pela primeira vez naquela semana. Só sua mãe, com a visão periférica tapada por uma viseira, não contemplava o espetáculo que uma vida nova proporcionava.
Findo o trajeto. Na curva da charrete para voltar ao trapiche, os olhos do potrinho encontraram os da sua mãe. Os dele, brilhantes e vivazes; os dela, já cansados, mas felizes em ver o filhote alegre com tão pouco. Por dentro pensava com seu cérebro de cavalo:
– Nada mais puro do que a felicidade de uma criança.
Na volta, as crianças humanas, ao verem o potrinho todo serelepe, atraíram-no para brincadeiras. Puxavam seu rabo e o alisavam. Ele, em principio, deixava. Era algo gostoso e ele se distraiu, não vendo quando sua mãe e o carroceiro se distanciavam. Dali a pouco os garotos tentaram montar no seu frágil dorso. Ele também deixou. Mas quando um dos meninos montou com maior ímpeto e agarrou sua fina crina, sentiu um golpe na barriga. Uma vez mais o instinto mandou-lhe ordens, e ele correu de dor e susto. Mais outro golpe e correu mais ainda, já assustado pelos gritos da molecada. Quando já estava cansado de correr com o peso extra nas costas, sentiu um terceiro golpe e desta vez saltou com as patas traseiras, jogando no chão o seu pequeno cavaleiro. O que antes era alegria transformou-se em tristeza ao ver que os meninos que o convidaram para brincar riam gostosamente do ocorrido. Erguendo-se do chão, o garoto e os outros correram atrás do potrinho para novas travessuras. Desta vez a experiência, e não o instinto, falou ao potrinho e o fez correr em direção à mãe que já ia longe com a charrete novamente cheia de turistas que voltavam para o trapiche.
Ao ver o filhote triste na parada do trapiche, a égua-mãe sabia que ele começara a descobrir como era a vida de cavalo. Sem ter o que fazer a não ser fungar de resignação, ela maternalmente apontou o focinho para seu úbere e chamou o triste e faminto potrinho para mamar enquanto o carroceiro conseguia novos passageiros.
Algum tempo se passou e o potrinho continuava acompanhando a mãe no trabalho, e até encontrou outros potrinhos nas redondezas. Todos eram como ele: a pele salgada, a patas firmes na areia fofa, e o dorso já sendo preparado pelos pequenos para suportar o peso dos grandes.
Já conhecia o trajeto entre o trapiche e a praia e sentia que era capaz de fazê-lo de olhos fechados ou mesmo sem que ninguém necessitasse guiá-lo, assim como sua mãe e seu pai, que sequer conheceu, falecido depois de anos naquele penoso trabalho, sem férias ou descanso antes da morte.
Apartado do leite materno, o potrinho já taludo e forte, foi apresentado pela primeira vez ao equipamento que o acompanharia pelo resto da vida: a charrete, uma charrete novinha em folha que aumentaria a renda daquela família de humanos. Agora mãe e filho eram colegas de trabalho.
De todo o aparato que lhe foi posto em seu primeiro dia de serviço, o freio era o mais penoso. Colocado na boca, sambava entre as mandíbulas, puxando-o para trás quando suas pernas teimosamente insistiam em andar fora do passo desejado pelo carroceiro. O peso da charrete acomodada nos seus costados por uma cangaia dificultava a locomoção. Mas suas pernas já estavam habituadas ao areal. O potro, já nominado cavalo, sustentava a charrete, mas ainda não conseguia fazê-la andar depois que o carroceiro montou no banco da frente. O peso quase fez arriar suas patas, que a muito custo mantiveram-se firmes. O carroceiro gritou, mas ele não se moveu. A visão era apenas frontal, tapada por uma viseira lateral que o impedia de ver os perigos ao redor, inclusive o de um chicote que bateu no seu espinhaço, fazendo com que o instinto, novamente ele, o empurrasse para uma ação típica de um cavalo: correr. E ele correu, mas apenas por poucos metros; o freio entrou em ação e domou seu instinto com outra dor, fazendo-o desacelerar e reavivando no seu cérebro de cavalo o conhecido mapa do trajeto entre o trapiche e a praia.
Estava feito. O potrinho era agora um cavalo treinado para puxar charretes com turistas na areia fofa de Galinhos, enquanto via outros potrinhos saltarem pelo mesmo areal, fustigados por outras crianças humanas, ambos treinando inconscientemente para ser aquilo: cavalos e carroceiros.