Muito tem se dito no pós-eleição (pós 1o turno, na verdade) sobre como é injusto o voto proporcional. Falam os enfurecidos que pessoas com menos de mil votos (caso dos candidatos do PSOL) assumiram vagas na Câmara dos Vereadores em detrimento de candidatos com quase cinco mil votos.
Como o leitor dessa Carta muito provavelmente já sabe, a eleição proporcional visa dar um equilíbrio à representação parlamentar, de modo a permitir que minorias sociais efetivamente sejam representadas no Legislativo. É a máxima da democracia: governo da maioria com respeito aos direitos das minorias.
Os críticos da eleição proporcional esquecem que alguns dos regimes mais autoritários do Século XX se estabeleceram a partir de deferências da maioria parlamentar ao governante de plantão. Por essa razão os regimes modernos adotam balanços contra-majoritários, como o controle de constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário e a legitimação das minorias parlamentares.
Em sua obra Crucificação e Democracia[1], Gustavo Zagrebelsky traz essa discussão sobre o rótulo de Democracia Crítica e ilustra o conceito com a seguinte pergunta: quem estava correto, Jesus ou Pilatos?
Ora, este último seguia a orientação da maioria da população judaica: libertar Barrabás e crucificar Jesus Cristo. Enquanto Pilatos representa a opressão da maioria, Jesus representa para Zagrebelsky a democracia crítica:
“Ao concluir essa reconstrução, queremos dizer que o amigo da democracia – da democracia crítica – é Jesus: aquele que, calado, convida, até o final, ao diálogo e à reflexão retrospectiva. Jesus que cala, esperando até o final, é um modelo. Lamentavelmente para nós, sem embargo, nós, diferentemente dele, não estamos tão seguros de ressuscitar ao terceiro dia, e não podemos nos permitir aguardar em silêncio até o final.
Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, tem que se mobilizar contra quem rechaça o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder e crê ter sempre razão. A mansidão – como atitude do espírito aberto ao diálogo, que não aspira a vencer, senão a convencer, e está disposto a deixar-se convencer – é certamente a virtude capital da democracia crítica.
Porém só o filho de Deus pôde ser manso como o cordeiro. A mansidão, na política, a fim de não se expor à irrisão, como imbecilidade, há de ser uma virtude recíproca. Se não é, em determinado momento, antes do final, haverá de romper o silêncio e deixar de aguentar.”
Sobre esse fundamento se justifica, portanto, a eleição proporcional.
O crítico do sistema apontaria de pronto a ideia: mas brasileiro não vota em partido!
Aí sim há culpa do sistema eleitoral. É que ele permite a formação de coligações em eleições proporcionais, permitindo que os votos direcionados a um candidato e um partido aproveitam a outro candidato e outro partido. Assim, no caso de Natal, quando se vota no Partido Comunista do Brasil se auxilia um candidato do Partido Popular Socialista que, apesar do nome, tem forte matiz liberal de direita no Brasil.
A alteração no sistema deve ser, então, nesse ponto: extinção das coligações proporcionais. Fortalece-se, assim, a criação de partidos mais sólidos e a melhor divisão ideológica entre candidatos.
Mas com o fortalecimento dos partidos, deve-se promover também a sua democratização interna. Partidos hoje têm donos (apesar da mídia convencionar os chamar de “líderes”). Se os partidos continuarem a ser clubes, jamais alcançarão maturidade ideológica. A situação fica ainda mais grave ante a imposição da fidelidade partidária e da criação de comissões provisórias nos Estados e Municípios no lugar de Diretórios. Essas comissões são dissolvíveis a qualquer tempo, sendo tal procedimento adotado para que os figurões “entreguem” seus partidos a quem bem entenderem.
Ainda temos, portanto, o que ajustar na eleição proporcional. Mas sua lógica é inegável. Agora nos resta apenas ver o que produzirão os vereadores minoritários na nova legislatura que se inicia.
[1] ZAGREBELSKY, Gustavo. Crucificação e democracia. São Paulo: Saraiva, 2011.