Alan Daniel Freire de Lacerda
Professor do Departamento de Políticas Públicas (UFRN) e doutor em Ciência Política (IUPERJ)
Um espectro assombra diversas discussões públicas em Natal – o espectro do “apartidarismo”. Em diversas circunstâncias, os partidos políticos e seus militantes têm sido vistos negativamente, ou até mesmo sido hostilizados, por cidadãos, muitos deles jovens, envolvidos em distintas mobilizações. Emissões de opinião neste sentido ocorreram no movimento Fora Micarla em 2011 e, mais recentemente, na chamada Revolta do Busão, contrária ao aumento do valor das passagens de ônibus.
No movimento estudantil (ME) da UFRN, é comum se ouvir a crítica de que os partidos têm agendas distintas da pauta estudantil de reivindicações. Os militantes dos partidos “instrumentalizam” as entidades estudantis para seus próprios fins, ao mesmo tempo em que suas discussões e divergências políticas “afastam” os estudantes do ME. Alguns filiados a partidos chegam mesmo, em acessos de tibieza, a concordar parcial ou totalmente com essas asserções, não levando suas bandeiras para manifestações, por exemplo.
Penso que toda essa linha de raciocínio é suspeita em termos democráticos e em grande medida falsa. Minhas objeções são múltiplas, e estão a seguir.
Os filiados e militantes das agremiações têm o direito de se manifestar nos movimentos e ingressar nas mais variadas entidades, sejam elas sindicais, estudantis ou de outro tipo. Eles também podem se organizar para influenciar a condução desses grupos, desde que não violem a lei e as regras estatutárias internas, quando estas existirem. Restringir sua ação seria inconstitucional e antidemocrático, pois criaria um viés injustificável a favor da atuação das pessoas sem vinculação partidária.
Há também uma objeção pragmática. Convido o leitor a fazer o seguinte experimento mental: retire do ME os militantes partidários e veja o que sobra de militância organizada. O descenso do movimento estudantil na UFRN no período 1989-91 coincidiu justamente com a crise de uma de suas principais facções partidárias: a vinculada ao PCB. Se os partidos saíssem das entidades estudantis, haveria provavelmente uma redução brutal na quantidade de atividades realizadas atualmente pelo ME.
Objeto ademais à tese da suposta diferença entre a pauta dos partidos e as “bandeiras” do movimento estudantil. Esta crítica à atuação dos partidos é especialmente frágil, ao supor ingenuamente que as reivindicações do ME estão descoladas do debate público mais amplo no Brasil. Na verdade, a posição dos partidos informa os termos do próprio debate das metas do ME em muitos casos.
Um bom exemplo disso é como responder às mudanças provocadas pelo Reuni, o programa de expansão do ensino superior federal criado pelo governo Lula (2003-10). Estudantes mais críticos do programa podem, por exemplo, endossar as posições defendidas por setores da oposição de esquerda àquele governo, asseverando que o programa prejudica o acesso dos alunos às estruturas universitárias de assistência estudantil. Estudantes próximos às posições petistas podem rebater dizendo que o aumento das vagas compensa um período de transição com certas carências. Por fim, estudantes mais à direita poderiam defender a massificação proposta pelo programa, mas reservando a certas universidades e institutos a posição de “centros de excelência”.
Não existe uma régua externa ao mundo para dizer que um assunto é pauta partidária e o outro é apenas estudantil. Em uma democracia liberal, os partidos buscam influenciar e mobilizar os eleitores onde quer que eles estejam, oferecendo posições para o debate, e divergindo visto que estão também a competir entre si no mercado eleitoral. Esta competição garante a alternância no poder e a busca pelo aprimoramento das políticas públicas no afã de satisfazer o eleitorado.
Os adeptos do chamado “apartidarismo” parecem esposar uma concepção de política que glorifica movimentos sociais espontâneos, “horizontais” e “descentrados”. Nada tenho contra tais movimentos, mas sugiro que eles se articulem com as instâncias partidárias e institucionais. O registro público das conquistas dos partidos políticos é grande, bastando para firmá-lo uns poucos exemplos. O PMDB foi central na redação de muitos capítulos da atual Constituição, incluindo vários avanços, reconhecidos como tal por analistas e pelas mais diversas forças políticas. Quadros ligados ao PT ajudaram a formular e executar praticamente toda a política social vigente no país. A coesão do PSDB e do DEM foi fundamental para eliminar a CPMF em 2007, um imposto cujo formato apresentava elementos questionáveis para muitos contribuintes.
Por fim, não acredito nos males do “aparelhamento” das entidades estudantis, ou pelo menos não creio que eles sejam tão negativos quanto se diz. A Central Única dos Trabalhadores, por exemplo, é ocupada de cima a baixo por quadros ligados ao PT. Isso a torna, por óbvio, menos crítica ao Governo Dilma, mas não impede que faça ameaças veladas de afastamento àquele, que podem melhorar a posição dos seus sindicatos em negociações. Isso se verificou recentemente no caso de diversas greves de funcionários públicos federais de sindicatos ligados à central, quando esta usou claramente seus canais no governo em certos dissídios salariais.
Termino o texto com o apelo para que se ponha um paradeiro ao discurso antipartidário. No fundo, ele atenta contra a nossa democracia representativa, uma das mais fortes do mundo em termos de participação eleitoral, e em nada ajuda a superar seus problemas.
Filiem-se a partidos. Militem nesses partidos. Mudem esses partidos se não gostam de sua operação interna. Contribuam, inclusive financeiramente, para as campanhas eleitorais que julguem serem as melhores – isso seria uma forma até de reduzir as patologias criadas pelo caixa 2 eleitoral. Debatam e divirjam, entrando ou não nas agremiações. Não tenham vergonha de tomar partido.