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Brás Cubas e a garota da Biblioteca Central

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Por aqueles dias, Gustavo, estudante de Psicologia da UFRN, tinha sido novamente apresentado à literatura de Machado de Assis, um verdadeiro mestre na leitura da alma humana. As obras do velho escritor carioca foram indicadas por um professor que cultuava as letras como um exercício de análise da psique humana, posta em conflitos corriqueiros do dia a dia daquela sociedade brasileira do fim do século XIX. Gustavo caminhava para o final do curso, o que significava o envolvimento com a trabalhosa monografia que absorvia todas suas horas, de modo que suas incursões pelos escritos de Machado de Assis, até naquele momento, não tinham ultrapassado a barreira das intenções.

Um dia estava ele na Biblioteca Central fundindo o cérebro em pesquisas para escrever seu trabalho de final de curso. A pletora de informações entulhava ainda mais a sua mente atribulada com a responsabilidade de obter um diploma, e tanta era a confusão que nada mais conseguia produzir. Precisava de um refresco, mas que fosse algo que não desviasse seu olhar da Psicologia. Foi quando lembrou a indicação do professor e decidiu que relaxaria com algum escrito de Machado de Assis. De imediato optou por Memórias Póstumas de Brás Cubas, que era, em verdade, o livro que mais guardava na lembrança por tê-lo impressionado no colegial.

Gustavo levantou-se para procurar o livro nas vastas estantes da Biblioteca Central. Antes, porém, tinha que descobrir em que lugar da biblioteca estava o seu Brás Cubas. Tarefa simples e de fácil resolução, já que a biblioteca dispunha de um serviço de rastreamento eletrônico que lhe daria a localização exata do livro na imensidão de estantes repletas de conhecimento. Assim ele fez. De pronto foi-lhe informado que o livro estava na seção de Literatura Brasileira, localizada no primeiro andar do prédio, mais precisamente na terceira estante do lado esquerdo, tranquilamente pousado na penúltima prateleira, que ficava bem a vista dos olhos. Apenas um detalhe lhe chamou a atenção: dos vários exemplares que a biblioteca possuía, apenas um estava disponível. Diante dessa informação, e por ser meio paranoico, Gustavo apressou-se rumo ao livro, temeroso de que alguém pudesse pegá-lo primeiro, roubando sua possibilidade de relaxar.

A seção de Literatura Brasileira não era muito longe dali, separada apenas por uma escada e alguns metros de caminhada que Gustavo percorreu com passos ligeiros. Queria correr, mas sentiu vergonha. Chegou ao extremo de pensar que se alguém o visse correndo na direção da seção de Literatura Brasileira atrairia o mesmo desejo de ter aquele livro, aquele único livro que aguardava um leitor na prateleira enquanto todos os outros já eram devorados por ávidos leitores.

Tentou afastar essa suposição amalucada e caminhar em ritmo normal. Mas ainda queria correr. O coração batia a cada passada larga que dava em direção ao livro, tendo que segurar a muito custo o ímpeto de suas pernas. Passou por seções e mais seções, até que uma placa no teto da biblioteca mostrava uma lista com várias categorias, dentre elas a de Literatura Brasileira.

As seções anteriores estavam todas vazias. Passou por mais uma – a de Literatura Russa – e enfim encontrou aquela que buscava: Literatura Brasileira A placa apontava que as duas fileiras de estantes destinavam-se aos escritores brasileiros e suas obras, formando um corredor só com livros produzidos por gente nossa. Todos estavam ali, e Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, devia ser a estrela da companhia com centenas de exemplares de seus escritos.

Gustavo sorriu e apontou no corredor de Literatura Brasileira estalando os dedos de satisfação. Mas seu regozijo durou pouquíssimo tempo.

Quando já estava dentro do imenso corredor, eis que divisou dentro dele uma garota. Estava ela com um livro na mão, parada em frente a uma prateleira; os olhos pregados nas páginas do livro fez Gustavo estranhar; de todas as seções vazias pelas quais passou, somente a que ele buscava tinha algum leitor, ou leitora.

– Mas que azar! Ou melhor, deve ser um bom sinal! Mostra que a literatura brasileira está prestigiada pelos alunos da Universidade. – pensou lá com seus botões.

Gustavo diminuiu a velocidade dos passos e ficou a observar a garota com mais acuidade. Era de estatura mediana, o cabelo estava preso num coque esquisito e usava roupas muito antigas para aqueles dias. Um cheiro de mofo misturado com naftalina pairava no ar, denunciando que a vestimenta da garota estivera guardada por muito tempo em algum armário, baú ou coisa parecida.

À medida que se aproximava, Gustavo começou a desconfiar que a garota estava justamente de fronte à prateleira onde repousavam as obras de Machado de Assis. Passou pelos livros de Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, e quando já estava quase ao lado da garota, seus olhos avistaram a prateleira destinada aos livros do Bruxo do Cosme Velho. A garota permanecia com a brochura na mão, totalmente absorvida pela leitura.

O cheiro de mofo estava mais forte, superando o de naftalina e inundando por completo o ar. Gustavo, alérgico, já sentia seu nariz produzir algum muco. Fungou, e o fungo produziu um barulho inadequado para o ambiente silencioso da Biblioteca Central. Ainda assim a garota não deu sequer pela sua presença: continuou impávida a ler o livro que tinha não mãos.

Gustavo então passou a esquadrinhar a prateleira em busca de Brás Cubas. O sistema de busca avisou que o único exemplar estava na penúltima prateleira, bem à vista dos olhos. Passou em revista toda a extensão da prateleira e nada encontrou. Viu dois exemplares de Quicas Borba, quatro de Dom Casmurro, um do Memorial de Aires – que pensou eu pegar para ler depois – e mais dois de Esaú e Jacó, mas nada do seu Memórias póstumas de Brás Cubas. Não se impacientou; sabia que era comum os livros não estarem exatamente nos locais indicados pelo sistema de busca. Muitos alunos, por já terem atingido o número máximo de empréstimos, costumavam esconder por trás dos livros disponíveis aqueles que queriam pegar quando devolvessem outros que estavam em seu poder. Gustavo teria apenas o trabalho de desenterrar o livro querido de algum lugar por trás dos livros mostrados nas prateleiras. Assim o fez. Meteu a mão por trás dos livros, subiu na ponta dos pés, foi até outras prateleiras vizinhas, mas nada de encontrá-lo. Voltou para estante de Machado de Assis e quase esbarrou na garota quando se abaixou para verificar as prateleiras mais baixas. Não que quisesse tê-la, mas nem assim teve a sua atenção.

Olhou com acuidade os livros empoeirados da parte de baixo até que seus joelhos pediram arrego. Na subida, porém, teve uma surpresa: olhando de baixo para cima a garota que lia, viu a capa do livro que estava em suas mãos: era Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Gustavo sorriu de satisfação por encontrá-lo, mas logo depois entristeceu por ter perdido o último exemplar do livro para aquela estranha criatura.

– Devia ter corrido! – pensou Gustavo, repreendendo-se por ter caminhado a passos lentos demais.

Ergueu-se e ficou sem saber se ia embora conformado ou se atuaria junto à garota a fim de saber se ela realmente ia levar o livro. Ficou no impasse, mas antes de chegar a uma resolução produziu a seguinte reflexão:

– Vamos pensar. A biblioteca tem dezenas de mesas onde os alunos fazem suas leituras sentados em confortáveis cadeiras. O que faz essa garota, de pé, aqui em frente à prateleira onde estava o livro, lendo-o avidamente sem sair do lugar? Certamente ela o pegou para uma consulta rápida e se empolgou com a leitura. Ora, das duas, uma: ou vai perder o entusiasmo e devolver logo, ou então a empolgação a fará levá-lo para casa a fim de lê-lo por completo, afinal, ninguém lê um livro inteiro assim de pé. Vou esperar um pouco. Logo ela terá que decidir sem que eu tenha que falar-lhe.

E ficou peruando pelas demais prateleiras, fingindo que procurava outro livro que não aquele que estava nas mãos da garota com cheiro de mofo e naftalina.

Alguns minutos se passaram e a garota não demonstrava nenhuma reação a não ser a de passar as páginas do livro. Seu olhar como que penetrava nas letras miúdas, engolindo-as com avidez semelhante à de uma certa Capitu com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada diante do cadáver de Escobar. Tudo ali lembrava o velho Machado de Assis, até mesmo a vetusta roupa que a garota trajava. Gustavo quase achou estranha a roupa da garota, mas já estava habituado a se deparar com tipos excêntricos na Universidade. Lembrando este detalhe, deixou até de repreender que alguém pudesse ficar tanto tempo lendo em pé. Mas o tempo passava e a paciência de Gustavo esvaia-se. Já tinha rodado por quase todas as prateleiras, agendado a leitura de inúmeras obras que vira ali em abundância, repudiado outras tantas, e nada de uma mínima reação da garota, que passava as páginas, imperturbável em sua concentração. Ademais, a alergia de Gustavo ao mofo dava sinais mais visíveis, e ele passou a fungar com mais intensidade, produzindo mais barulho. Nem isso era capaz de perturbá-la. Mas Gustavo não tinha o dia todo e por isso resolveu perguntar-lhe:

– Olá. Esse livro que você tem nas mãos é o Memórias Póstumas de Brás Cubas, não é?

A garota, ainda sem levantar a vista da brochura, respondeu rápido, mas com um discreto sorriso nos lábios:

– Sim!

Gustavo esperava que ela tomasse a iniciativa de perguntar se ele estava interessado no livro, mas como a resposta dela não indicou nenhuma intenção de ficar ou de devolver, ele quedou na indecisão. Teria que perguntar novamente. Antes, porém, Gustavo observou algo mais inesperado: a garota sacou de um lápis grafite e pôs-se a grifar um trecho do livro. Enquanto ela cometia essa pequena ilegalidade, Gustavo reagiu como que por impulso:

– Não…

Mas era tarde. A garota terminou o grifo, fechou o livro, colocou de volta na estante, virou-se e saiu, deixando Gustavo atônito e sozinho no corredor de Literatura Brasileira vendo-a desaparecer na curva da seção.

– Só mesmo Machado de Assis para explicar uma cena dessas. – pensou.

A satisfação bateu na sua porta, assim como a curiosidade. Sacou o livro da estante e folheou-o até encontrar o trecho que a garota havia grifado. Notou que o destaque não foi um sublinhado, e sim um risco por cima das palavras. Estava no final do livro, nas últimas palavras, talvez as mais famosas da obra:

“- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

O grifo era de um grafite grosseiro, riscado com força suficiente para quase rasgar a página. Gustavo encafifou-se. Com a missão cumprida, encaminhou-se para o guichê do empréstimo. Antes de sair, viu que o funcionário da Biblioteca Central adentrava no corredor com um carrinho cheio de livros para serem repostos nos seus devidos lugares depois de terem sido devolvidos pelos alunos.

Gustavo esperava encontrar a garota que riscou o livro pelo caminho apenas para olhar mais detidamente o seu rosto, cuja fisionomia não deixara viva recordação. Mas não a encontrou. Sem problemas.

– Deve ser apenas uma maluca do curso de Letras. – pensou Gustavo, lembrando que naquele curso existem umas figuras realmente bizarras.

Feito o empréstimo, notou no recibo entregue pelo funcionário da biblioteca que ainda tinha crédito para pegar mais um livro emprestado. Foi quando lembrou ter visto na seção de Literatura Brasileira, enquanto esperava a garota se decidir, um exemplar de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Tinha lido na época da escola, assim como Memórias Póstumas, mas queria lê-lo novamente hoje para relembrar, depois de terminada a monografia, claro. Assim, decidiu voltar para levá-lo também.

Regressou pelo mesmo caminho até chegar à seção de Literatura Brasileira. Virando para dentro do mesmo corredor de prateleiras, eis que se deparou com a garota com cheiro de mofo e naftalina parada exatamente no mesmo lugar, segurando novamente um livro. Gustavo paralisou e ficou a observar de longe aquele mesmo cenário. Aos poucos foi chegando perto, até passar por trás da garota em direção à prateleira de Graciliano Ramos. Ela novamente permaneceu inerme em sua leitura. Desta vez não deu para ver qual era a obra, a não ser que certamente seria de Machado de Assis.

– Essa garota deve ter algum problema com Machado de Assis.

Gustavo já sabia onde estava o Vidas Secas e não se demorou a pegá-lo. Devia ir embora, mas alguma coisa naquela garota chamava sua atenção. Resolveu passar de novo por trás dela para ver qual era o livro que prendia sua atenção desta vez. Estava quase ao seu lado quando de novo ela sacou o lápis grafite e riscou o livro. Gustavo não se conteve, parou atrás da garota e viu que ela riscou o mesmo trecho do Memórias póstumas de Brás Cubas.

“- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Ela fechou o livro e o colocou de volta na estante com o mesmo sorriso de satisfação. Virou-se e já caminhava para o final do corredor quando Gustavo interpelou-a:

– Moça! Com licença. Posso te fazer uma pergunta?

Ela retornou e abriu um discreto sorriso, aquele mesmo sorriso que ela esboçou para Gustavo no primeiro encontro, só que desta vez seus olhos se cruzaram.

– Sim!

– Notei que você riscou um trecho de dois exemplares de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Um está aqui comigo, e o outro você acabou de colocar de volta na estante. Desculpe a impertinência, mas qual a razão disto?

Ela, com o mesmo sorriso nos lábios, respondeu:

– Qual foi o trecho que eu risquei?

Gustavo abriu o livro na página onde estava o grifo e mostrou.

– É este aqui: “- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Ela olhou ainda com o mesmo sorriso, deu duas leves batidinhas na página, mais precisamente em cima do trecho riscado, e o fechou nas mãos de Gustavo. Levemente ela inclinou o rosto para cima e calou por alguns instantes, deixando Gustavo confuso e temeroso de estar diante de uma louca. O cheiro de naftalina agora era mais forte, inundando o ar e as narinas alérgicas de Gustavo. Um longo fungado quebrou o silêncio, como que trazendo a garota de volta à realidade. Ela olhou para Gustavo com o mesmo sorriso e disse em tom de citação:

– “Tive filhos, transmiti a uma maravilhosa criatura o legado de nossa fortuna”.

Virou-se e saiu a passos lentos até sumir na curva do corredor.

Gustavo foi atrás dela, mas de novo não a encontrou.

Atônito e sem entender nada, voltou para a estante de Machado de Assis e viu que vários exemplares do Memórias Póstumas estavam à mostra, certamente trazidos pelo funcionário que vira antes.

Tomado de mórbida curiosidade, pegou um por um os volumes e abriu na última página. Em todos, em absolutamente todos, nos seis exemplares do Memórias póstumas de Brás Cubas, havia a marca da passagem da garota com cheiro de naftalina e mofo:

“- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Gustavo gelou de pavor e saiu ligeiro da seção de Literatura Brasileira, deixando guardado consigo, para que ninguém soubesse, que ele tinha visto e conversado com uma maluca que andava a riscar livros da Biblioteca Central por discordar do desfecho dado pelo genial Machado de Assis, ou com o fantasma da filha de Brás Cubas, que se ocupava de apagar das páginas do romance a equivocada informação da esterilidade do seu falecido pai.