Há muito as eleições no Brasil são disputadas no mínimo em dois turnos. Em cidades com segundo turno disputado no voto, ainda existe o terceiro turno. Esse turno excedente é o travado na Justiça Eleitoral.
É que a legislação eleitoral dá aos candidatos, partidos e coligações inúmeras chances processuais para cassar candidaturas e mandatos de pessoas eleitas com apoio de ilicitudes.
A primeira delas é a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, AIJE, ajuizada durante as eleições para aferir abuso de poder político, econômico ou sobre os meios de comunicação social por candidatos e pode ensejar desde multa a cassação da candidatura ou mandato e inelegibilidade.
A segunda é o Recurso contra Expedição de Diploma, RCED, que é utilizado para aferir inelegibilidades supervenientes ao registro de candidatura ou erros na apuração dos votos, definição de quociente eleitoral e outras matérias técnicas específicas da apuração de resultados.
A terceira é a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, AIME, que é ajuizada até quinze dias após a diplomação dos candidatos para provar que a eleição foi influenciada por abuso de poder econômico, corrupção ou fraude. Uma peculiaridade da AIME é que exige a comprovação de potencialidade lesiva dos atos de abuso para que possa cassar mandatos, porque entende a Justiça Eleitoral que essa ação protege a eleição em si, não a vontade individual de cada eleitor.
Tão clássica é a utilização desses mecanismos por candidatos derrotados que no interior do Brasil já há o comércio dos famosos “kit AIME” para sumariamente puxar o tapete dos vencedores.
Vê-se que ocorre aqui a substituição da vontade popular pela vontade dos julgadores ao fulminar a decisão eleitoral. Um professor que tive se referia constantemente à “eleição dos capas-pretas”, em referência às togas dos juízes.
O ideal, para a fiel expressão da soberania popular, seria uma eleição completamente livre e desembaraçada, em que o eleitor votasse com consciência no candidato que lhe aprouvesse. Contudo, a realidade do Brasil é outra. A história demonstra que a experiência democrática no Brasil sempre foi frágil.
O Brasil colonial e o imperial, evidentemente, não permitiam ao cidadão médio participar e decidir sobre os rumos de seu país, tanto pelo modelo monárquico como, mais tarde, pelo voto parlamentar censitário. Até mesmo a República instituída em 1891 não correspondeu a um regime democrático em si. Instituiu um Estado regionalista e coronelista, em que os eleitores eram literalmente manobrados como gado mediante técnicas como o voto de cabresto e o curral eleitoral.
Seguiu-se à República Velha o regime ditatorial do Estado Novo, que suspendeu os direitos e garantias individuais, bem como as eleições populares. Foi criado um Estado Policial combativo contra os inimigos do regime. A Constituição Federal de 1946, por sua vez, permitiu a primeira experiência realmente democrática do Brasil. Foram eleitos três Presidentes, apesar de apenas dois deles terem terminado o mandato (Marechal Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek; Jânio Quadros renunciou à Presidência e seu vice, João Goulart, foi vítima do Golpe Militar de 1964). Seguiu-se, contudo, a essa breve experiência democrática, um violento regime de exceção, no qual foram realmente suspensas quaisquer esperanças democráticas.
O Brasil, além de inexperiente no exercício de suas prerrogativas de soberania popular, teve uma construção muito peculiar da cidadania de seus habitantes. Aqui, primeiro surgiram os direitos sociais, implantados em um período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis, através de um ditador que se tornou popular. A pirâmide clássica das “gerações” de direitos foi completamente invertida. Curiosa é a constatação de José Murilo de Carvalho a respeito:
“A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa para o regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população.”¹
Não há de se estranhar, considerado esse histórico, a inexperiência do brasileiro com exercício da soberania popular. Por essa razão sou um otimista. Não sabemos votar, mas com certeza estamos aprendendo.
E nas eleições de 2012, acirradas como estão e banhadas por dinheiro de origem duvidosa, prevejo uma chuva de AIME’s e RCED’s. No próximo domingo, votemos com sabedoria. Caso contrário, vamos nos preparar para que a eleição continue. Mas, dessa vez, nos tribunais.
¹CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 220.