A rotina de José Carlos Martins distava léguas da emoção de um festim. Acordar cedo, tirar a barba, tomar banho, tomar café e trabalhar. Ouvir algumas notícias no rádio, ocupar um pouco a cabeça para estacionar o carro, programar o serviço do dia. Acessar a internet, ler outras notícias, compartilhar postagens no Facebook. Tirar os sapatos e colocá-los debaixo da mesa de trabalho era o que de mais heterodoxo fazia no cumprimento de uma rotina que já ultrapassara a maioridade.
Apesar da repetição do ritual, aos olhos de José Carlos aqueles atos meticulosamente sequenciados não eram vistos com olhos frustrados que atestam que todas as rotinas são odiosas. Ao contrário. Gostava deles e não se impacientava com quem de alguma forma, direta ou indireta, o acusasse de ser um sujeito dado ao tédio de uma rotina. É que não era do seu costume discordar das pessoas, mesmo quando em questão estavam aspectos relacionados a ele próprio. José Carlos era inimigo da discórdia, mas por motivos outros que não a paz da sociedade. Aspirava apenas a sua própria paz.
Como fazia todos os dias, José Carlos chegava ao local de trabalho e, entre uma carimbada e outra, batia o ponto no cafezinho. Lá encontrava alguns colegas a parolar o assunto do momento; observava toda a discussão sem meter seu bedelho prudente enquanto houvesse uma discordância adentrando pelos seus ouvidos. Quando acontecia de chegar bem no meio de uma disputa retórica, se dirigia para a garrafa térmica e fingia que não estava dando atenção ao embate. Porém, depois de servir-se ficava ao lado, cubando todo o desenrolar dos argumentos, mas por dentro condenava o gasto de energia com grandes ninharias. Encerrado o debate com a saída de um dos contendores, ficava sorvendo seu café, enquanto o debatedor remanescente o indagava:
– Concorda comigo, Zé Carlos?
E ele, de pronto e seu tirar a atenção da xícara que tinha nas mãos, assentia:
– Plenamente!
E obtia o sorriso do colega, além do sossego de um último gole de café frio.
Entrava, e se no meio do caminho encontrasse o outro debatedor ainda a repercutir o assunto, tentava desviar do caminho. Em sendo estreita a passagem, findava por cruzar com o dito cujo que, vendo-o, atirava inapelável em busca de nova adesão:
– Pronto! Está aqui José Carlos que viu toda a discussão! Diga, colega, tenho razão ou não?
Ele, sem piscar e sem desviar do caminho, dizia:
– Totalmente!
E entrava na sua sala, sentava em sua cadeira, tirava os sapatos num gesto de rebeldia contida, e continuava sua vida tranquila e sem embates desnecessários.
Quando participava de reuniões sociais, cuidava em ausentar-se da roda em que assuntos polêmicos estavam na pauta, refugiando-se com as crianças, mulheres, velhinhas ou com a criadagem, enquanto os assuntos todos eram debatidos sem que se chegasse a bom termo de qualquer um deles. Não gostava de futebol para não correr o risco de torcer para um time e ter que entrar na dilacerante disputa com os rivais. Até tinha suas opiniões, mas eram poucas e formadas sem muito esmero para não correr o risco de sair por ai emitindo-as. Na verdade o que ele não queria era perder tempo com discussões, no que via uma grande vantagem, além de não correr o perigo de criar animosidades com quem quer que fosse. Ademais, temia ser desmoralizado caso fosse pego a defender alguma inconsistência, ou tragado pelo alarido retórico de um bom orador, fazendo sua reputação de homem prudente ruir por uma lide argumentativa temerária. Mas sua postura esquiva não tardou a ser detectada por alguns, que logo testariam até onde ia a prudência que José Carlos tanto se agastava em preservar.
Foi numa festa de bodas de ouro da sogra que seu cunhado Gilberto Holanda resolveu testar o fugitivo José Carlos.
Gilberto arquitetou um plano simples para colocá-lo no meio de uma discussão tola, mas que o compelisse a omitir uma opinião que não fosse a concordância com a pessoa que o indagava. Colaboraria para a empreitada um primo da sua mulher, Ricardo Alves. Ambos combinaram de puxar com ele algum assunto a fim de obter uma concordância, embora fossem opiniões contraditórias. Não era tarefa difícil, apenas nunca tentada. Assim foi feito.
Gilberto avistou José Carlos servindo-se de uma cerveja no isopor e encostou sorrateiramente:
– Boa noite, José Carlos! Como vai?
Erguendo a espinha com uma lata de cerveja não mão, José Carlos retribuiu o cumprimento:
– Boa noite, Gilberto. Tudo em ordem, e você?
– Tudo tranquilo, sem muitas novidades. Só tem uma coisa que está me angustiando e eu gostaria de conversar com você sobre isso.
– Pois não. Pode falar.
– O negócio é o seguinte. Estou querendo me candidatar a vereador nas próximas eleições. Tenho pensando nisso há tempos e é algo que me atrai muito. O único obstáculo que me vem à cabeça é a quantidade de dinheiro que terei que gastar para bancar a campanha. Mas não importa! Tenho esse dinheiro guardado e quero muito me candidatar, mas preciso do apoio dos amigos. Por isso quis ter essa conversa com você a fim de obter uma palavra encorajadora.
José Carlos inquietou-se com a solicitação esdrúxula do cunhado, mas notando que a vontade dele era grande demais para ser demovida, não encontrou outra resposta que não a seguinte:
– Vá em frente! Tem meu total apoio!
E sorriu satisfeito por ter fugido de um embaraço maior ante o aparente entusiasmo do cunhado com algo tão sem futuro. Após ouvir mais algum palavreado de Gilberto, saiu de mansinho quando viu que um terceiro se aproximava falando de futebol, e foi tomar assento na mesa onde estava o sogro.
Conforme o combinado, Ricardo Alves foi ao encontro de José Carlos a fim de testar até onde ia sua famosa aversão às opiniões contraditórias. Achegou-se, cumprimentou o sogro de José Carlos e sentou-se ao seu lado, servindo-se de uma dose de whisky que ornava a mesa. Sem muitos arrodeios, Ricardo falou:
– Meu amigo José Carlos. Você está sabendo da loucura que seu cunhado anda planejando? O homem quer se candidatar a vereador! Pior, pretende gastar uma fortuna para entrar nessa barca furada! Será que ele enlouqueceu de vez? Eu mesmo já disse para ele não emburacar nessa jornada, mas o rapaz é teimoso feito uma mula. Você que é sempre muito sensato, o que acha disso?
José Carlos mais uma vez impacientou-se com a emissão de opiniões sobre assuntos alheios com alto potencial para a discórdia, mas notando que Ricardo tinha uma opinião formadíssima sobre o assunto da candidatura de Gilberto, não teve dúvidas e atestou sem pestanejar:
– Concordo plenamente com você. É uma loucura.
Eis que quando ele terminou de proferir tais palavras e já fez gesto de erguer-se, Gilberto já estava postado bem atrás dele, ouvindo toda a conversa justamente para pegá-lo emitindo pareceres consonantes só para fugir ao debate. Gilberto bateu no ombro de José Carlos e o viu girar lentamente. Quando os olhares se encontraram, eis que Gilberto desenhava no rosto um semblante carrancudo, denunciando que ouvira o parecer contrário de José Carlos sobre o mesmo assunto que havia sido interrogado minutos antes.
José Carlos gelou a espinha ao contemplar os dois ali, um sentado ao seu lado e o outro de pé, ambos olhando aquele rosto já atormentado. A contradição pairava no ar e parecia que ia tragar José Carlos em meio aos seus efeitos maléficos. Seus olhos iam e vinham de um lado para outro, fitando ora um ora outro, num frenesi de indecisão diante de dois defensores de opiniões totalmente divergentes. Não sabia como agir e se viu em apuros, apanhado a fazer o que mais sabia, que era concordar imediatamente com quem pretendesse dele alguma palavra.
Aquele momento de aflição durou alguns segundos e Gilberto saboreava cada instante, até que resolveu aumentá-lo ainda mais:
– E então José Carlos, você me disse uma coisa e eis que eu o flagro dizendo outra completamente diferente, homem! Como você me explica isso?
Ricardo deu sua contribuição ao empreendimento reforçando o cerco a José Carlos:
– Ah!, então quer dizer que ele andou lhe dizendo que concordava com sua candidatura, Gilberto?
– Sim, Ricardo! Quando eu perguntei o que ele achava sobre minha candidatura ele não pestanejou para dizer que concordava plenamente. Vê se posso confiar num homem deste!
– De fato, Gilberto. É bom ter cuidado com as palavras de quem concorda com tudo. Este aí, então, se alguém disser que o céu é verde limão ele concorda no ato!
José Carlos permanecia calado diante de dois antigos opositores que agora concordavam em infernizá-lo com seu costume ancestral de não alimentar discussões. Estava num beco sem saída e não sabia o que dizer.
– E então, José Carlos, o que você acha disso? – perguntou Gilberto de forma incisiva, num último ato de seu plano para fazê-lo tomar partido diante de duas opiniões distintas.
Eis que veio a salvação. A mente de José Carlos se iluminou e seus olhos brilharam, emitindo a luz da inteligência que se expandia dentro dele. As palavras se formaram no seu cérebro e tomaram o caminho dos seus lábios que, resolutos, afirmaram:
– O que posso dizer? Ambos têm razão: eu, José Carlos Martins, fujo das discussões como o diabo foge da cruz.
Levantou-se, sorriso aberto, cerveja na mão e satisfeito por mais uma vez não ter perdido seu tempo com uma disputa, deixando os dois se entreolhando, surpresos com a astúcia de José Carlos, o fugitivo da discórdia.