O texto publicado no Novo Jornal e após os comentários que farei, de autoria do jornalista Everton Dantas – Indignação a R$ 0,20 -, é um verdadeiro show de sofismas.
01) O dito cujo inicia a sua missiva, estabelecendo, logo de cara, uma falsa hierarquia: é mais importante se indignar pelas crianças que moram na rua do que com o péssimo transporte público. O raciocínio é bastante sentimental e joga com o emocional do leitor. Porém, desconsidera que, numa democracia – acho que vivemos em uma, não?! -, os cidadãos podem questionar aquilo que quiserem. É válido protestar contra o sistema prisional falido, saúde de péssima qualidade, ônibus que não passa, lixo que não é recolhido. No fundo, aquela velha divisão: primeiro o corpo! Depois a alma! Primeiro comida! Depois dignidade!
02) O Everton Dantas continua na sua tocada (pseudo) argumentativa e alega, num tom moralista e reproduzindo, possivelmente, sua condição de classe sócio-econômica, que fazer protesto por “R$ 0,20”, diante do caos em que Natal se encontra e como se o indigno serviço de transporte público não fizesse parte dele, é bobagem. Ora, de repente, pode ser para mim, pode ser para ele. Mas 02 pessoas a cada 10 não pegam ônibus porque a passagem irá “descompletar” – belo eufemismo, não? – o seu orçamento. Cerca de 20% dos natalenses produzem o direito legal de ir e vir à pé ou de bicicleta. Mas não há qualquer relação com uma nova consciência ecológica. Só falta de recursos mesmo. E a cada elevação da tarifa o drama só aumenta.
03) Depois de descaracterizar a reivindicação da #RevoltadoBusão, defendendo, meio sem jeito, como algo menor. No final, ele se mostra e conclui em tom solene: “Aqui, até os motivos para indignar-se são pequenos. São burgueses.” A frase me lembrou colegas do curso de ciências sociais, que ao lerem – e não entenderem – o manifesto do partido comunista, de Marx e Engels, saem a chamar de burguês quem tem celular, quem anda de carro, quem curte livros e até quem gosta de namorar mulher bonita.
Na tal absurda lógica, que continua abusando dos enquadramentos morais, também é burguesa a pessoa que quer um ônibus passando próximo de casa, e não apenas nos locais que garantem o filé econômico para as empresas; que não deseja esperar por uma hora na parada, se locomover numa lata de sardinha e ainda pagar uma tarifa que não foi legitimada pelos trâmites regulatórios aprovados democraticamente. Que foi institucionalizada por um sindicato patronal, que já se tornou um poder paralelo. Que… Que… Que…
Burgueses tentando ingressar num ônibus lotado
04) Os “empresários” de ônibus estão com as licenças vencidas desde 2010, o controle dos custos do transporte urbano foi transferido para o Seturde e a prefeitura, hoje, não tem a menor condição de dizer se o valor é minimamente justo, o que deveria ser sua prerrogativa básica. Outras cidades do nordeste têm linhas mais condizentes com o crescimento urbano do município, praticam valores intermediários para percursos menores, ao contrário dos natalenses, que sempre pagam tarifa cheia, e os ônibus circulam 24 horas por dia.
Êita… Lá vai eu, mais uma vez, tocar nessas questões menores enquanto as criancinhas estão nas ruas… É… Deve ser meu lado burguês falando alto…
PS. As pessoas podem pedir mais respeito e serviços públicos de qualidade em Natal também. Não apenas em Berlim, ou em Londres*, como Everton defende com o seu etnocentrismo as avessas.
* Algumas das cidades citadas pelo referido jornalista não têm criancinhas na rua porque elas costumam morrer com as fortes ondas de frio. A expectativa de vida de um mendigo na Alemanha é menor do que no Brasil. Não tem nada a ver com uma suposta superioridade civilizatória, ou um estágio que precisamos alcançar.
JORNAL DE EVERTON DANTAS | Indignação a R$ 0,20
por Redação
EVERTON DANTAS
Jornalista
▶ dantas.everton@gmail.com
▶ twitter.com/evertondantas
Fosse outra cidade, Miami talvez, eu entendesse. Fosse a Cidade do México, talvez também. Mas é Natal. É Rio Grande do Norte, então minha cuca está fundida. Há quatro anos, na capital, há cerca de cidade inteira come o pão que a borboleta amassou. A coleta regular de lixo é deficitária e é muito comum ver lixo acumulado pelas ruas. Esse lixo, não se engane, gera doenças. Nesse mesmo período, o cuidado com as vias públicas também passou a deixar muito a desejar. Não há quem não conheça história ou tenha mesmo passado pela situação de ter tido prejuízo por conta dos buracos que a cidade mantém. A saúde, sua falta de estrutura, é outro tema que há muito só aparece encartada em problemas.
Mas esses três itens iniciais já são corriqueiros, todo mundo fala. Se a gente fizer um levantamento aqui mesmo no NOVO JORNAL, seis dos seis articulistas que ocupam este espaço (“O jornal de…”) tocam nesse assunto ou na má administração da prefeitura pelo menos uma vez ao mês.
Mas há algo muito mais sério. Como repórter e como pseudo-morador, algo que mais me deixa impressionado é como, em Natal, pessoas vivem no e do lixo, sem qualquer dignidade (não se trata de catadores, é preciso dfestacar). Primeiramente, são crianças, adolescentes e adultos (de ambos os sexos) que estão envolvidos com o crack e que, de alguns anos para cá, se tornaram muito numerosos; sem que ninguém diga nada a respeito.
Quem diz é a ONU: uma criança que usa crack pode ter o cérebro comprometido. Você já se perguntou o quanto pode custar ao mundo um cérebro de uma criança comprometido? Quanto será que custa um cérebro de uma criança?
Além disso, também cresceu o número de pessoas que vive na rua. Perceba. Olhe em volta. Há alguns anos, em Natal, as calçadas das lojas começaram a ser ocupadas à noite por moradores de rua que dormem nesses locais. E que, de dia, ninguém sabe. Pode ser que procurem emprego. Mas podem ser que não arrumem, vítimas que são deste eterno preconceito contra quem é vítima da miséria, a histórica miséria que opõe uns e outros, geneticamente, neste Brasil varonil. E que ludibria muitos.
Além disso, nos sinais, cresceu o número de crianças e adolescentes limpando vidros, vendendo coisas. Não se sabe se estão estudando no turno inverso. Ou se são explorado por seus pais. Ou se já não estão mais em casa e a rua já se tornou seu lar. A rua como lar é algo imenso. Tão imenso a ponto de guardar um inferno em cada quarteirão. Quem é que não se queima num território assim. Ainda mais tendo que pedir moedas; e receber não o tempo inteiro.
E ainda tem, de madrugada, uma verdadeira população que vive de revirar lixo alheio em busca do próprio pão. Algo que também conta com crianças, na madrugada. Que crianças serão essas no futuro. Tudo isso ocorre em Natal sem que ninguém, ou só alguns poucos, faça algo para mudar essa realidade. Tudo isso ocorre todo dia. Todo dia cresce um pouco.
Todo dia uma nova vítima e um novo algoz. Algo que vai se espalhando aos poucos. Como lava descendo do vulcão, vai comendo tudo em volta, milímetro a milímetro. E todos sabem que leva tempo demais solucionar algo assim. É pesado demais se indignar com algo assim.
Isso tudo sem falar na parte política, que mereceria um artigo à parte mas pode ser resumida assim: historicamente, os mesmos que não fazem nada permanecem fazendo o mesmo nada de sempre.
Então, de repente, um despertar: as pessoas saíram às ruas, fecharam as rodovias; protestaram; enfrentaram a polícia e hostilizaram a imprensa; fizeram roletaço; postaram comentários no facebook; postaram fotos; e queimaram um ônibus. Um sucesso. Que nem “Porrada”, dos Titãs, lembra: “Nota dez para as meninas da torcida adversária/ Parabéns ao academicos da associação / Saudações para os formandos da cadeira de direito / A todas as senhoras muita consideração / Porrada, nos caras que não fazem nada/ Porrada, nos caras que não fazem nada / Distribuição de panfletos / Revindicação dos direitos / Associação de pais e mestres / Proliferação das pestes / Porrada / Porrada porrada / Porrada / Nos caras que não fazem nada, (Nota dez)”.
Fosse outra cidade, Buenos Aires talvez, eu entenderia. Fosse a Filadélfia, talvez também. Mas é Natal. É Rio Grande do Norte, então minha cuca está fundida (feito um ônibus). Aqui, até os motivos para indignar-se são pequenos. São burgueses.