Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”
O conto “Neblina Sobre Xebico” (Night Wire), publicado pela primeira vez 1926 na revista “Weird Tales”, tornou-se um clássico das “pulp fictions” sci fi e horror por expressar o imaginário subterrâneo da época do início da Era da Informação: o mix gótico entre espiritualismo e novas tecnologias da informação baseadas na eletricidade e eletromagnetismo. Do seu autor H. F. Arnold pouco se sabe a não ser de ter sido escritor e jornalista e de ter se tornado mais um dos autores perdidos ou esquecidos no campo da literatura fantástica.
Reproduzimos abaixo o conto “Night Wire” de H. F. Arnold. Originalmente foi publicado em 1926 pela revista “Weird Tales”. No Brasil, esse conto apareceu na edição 14 de outubro de 1973 da revista “Planeta” sob o título “Neblina Sobre Xebico”. Pouco se sabe sobre a biografia do seu autor, além de ter sido escritor, jornalista e falecer em 1963. Mesmo esses poucos detalhes podem não ser verdade. Sua obra se resume a esse conto e outros dois publicados pela mesma revista e serializados em várias edições entre 1926 e 1937: “The City of Iron Cubes” e “When Atlantis Was”.
H. F. Arnold foi mais um dos autores esquecidos ou perdidos no campo das “pulp fictions” de sci fi e terror no século XX. Surpreendente, pois esse conto “Neblina Sobre Xebico” foi um dos contos mais populares da revista “Weird Tales” que também editou e divulgou obras de Lovecreft, Bradbury e Jean Ray. Muitos especialistas em literatura sci fi e horror encontram semelhanças entre esse conto de H. F. Arnold e “The Mist” de Stephen King e “The Fog” de John Carpenter.
O conto é ambientado à época dos primeiros dias das empresas jornalísticas, antes da massificação dos telefones e teletipos. Nessa época, muitos jornais usavam os serviços telegráficos para buscar notícias nas regiões fora dos locais de cobertura dos repórteres. Os operadores desses serviços de telégrafos nas redações dos jornais eram pessoas com um talento especial: ouvir o código Morse e, simultaneamente, transcrever as notícias.
Esse serviço de coleta de notícias se estendia em longos plantões noturnos. É num desses plantões que gira o aterrorizante conto de H.F. Arnold, revelando o conhecimento do autor sobre a rotina das redações dos jornais da época (talvez Arnold, de fato, tenha sido mesmo jornalista).
O que é notável nessa narrativa é que o conto expressa um imaginário subterrâneo da, então, evanescente Era da Informação: o inesperado encontro entre eletricidade, informação e espiritualismo.
Pesquisadores como Erik Davis (“Techgnosis – myth, magic and mysticism in the age of information”, New York: Serpent Tail, 2004) acreditam que o Espiritualismo foi a primeira religião da Era da Informação. Os fenômenos mediúnicos, mesas girantes, escritas automáticas etc. estudados por Alan Kardec e pela Antroposofia de Madame Blavatsky e Leadbater no século XIX, surgem simultaneamente à descoberta do eletromagnetismo e na transformação da eletricidade em informação com o telégrafo. Os próprios fenômenos paranormais começam a ser interpretados como fenômenos eletromagnéticos de comunicação espiritual.
Portanto, “Neblina Sobre Xebico” acabou tornando-se um clássico La literatura sci fi e horror por expressar o imaginário tecnológico dos primeiros momentos da Era da Informação: o mix entre espiritualismo e modernas tecnologias da informação.
Boa leitura.
NEBLINA SOBRE XEBICO (NIGHT WIRE)
H. F. Arnold
Nova York, 30 de setembro — Flash C. P.
“O embaixador Holliwell faleceu hoje. A morte ocorreu repentinamente, quando o embaixador estava sozinho em seu escritório…”
Há alguma coisa de ímpio nesse trabalho noturno, junto aos telégrafos dos jornais. O camarada fica no último andar de um edifício escutando os sussurros de uma civilização. Nova York, Londres, Calcutá, Bombaim, Singapura, são a porta ao lado, a iluminação das ruas apaga o mundo adormecido.
Durante a madrugada, entre as duas e as quatro da manhã, os funcionários cochilam em cima dos receptores e as notícias vão chegando. Incêndios, desastres, suicídios. Crimes, manifestações políticas, catástrofes. Por vezes, um terremoto com uma lista de mortos do comprimento de um braço. O telegrafista, caindo de sono, bate com um dedo a notícia em sua máquina de escrever.
De tempos em tempos, presta mais atenção, escuta com interesse. Acabou de ouvir o nome de um sujeito que conheceu em Singapura, Halifax ou Paris.
Talvez tenha sido bem sucedido na vida, se não foi assassinado ou morreu afogado, o que é mais provável. Ou então, decidiu simplesmente desaparecer, escolhendo uma saída bastante original para virar notícia. Mas é raro. Às vezes, porém, acontecem coisas curiosas. Como foi no caso da outra noite. Ainda não me recuperei completamente. Gostaria bem de conseguir.
Meu trabalho consiste em dirigir o serviço noturno num porto da costa do Pacífico. Tinha um único telegrafista sob minhas ordens; chamava-se John Morgan. Devia ter seus 40 anos. Era do tipo sóbrio e trabalhador.
Era um dos melhores telegrafistas, o que chamamos de um homem “duplo”. Isso quer dizer que era capaz de operar dois instrumentos ao mesmo tempo, enquanto escrevia as mensagens recebidas em máquinas diferentes.
Geralmente, só nos servíamos de uma linha durante a noite. Mas algumas vezes, bem tarde, as notícias começavam a chover. As estações de Chicago e de Denver abriam, então, uma segunda linha; era aí que Morgan tinha que se virar. Parecia um autômato. Um feiticeiro-robô que funcionava maravilhosamente. Na noite de 16, queixou-se de cansaço. Foi a primeira e a última vez que o ouvi falar de si mesmo.
Eram três horas. Cochilava sobre as notícias espalhadas em cima da minha mesa.
– Jim, disse Morgan, você não se tem a impressão de estar abafado aqui?
– Olhe, não sinto nada, John – respondi -, mas posso abrir a janela, se você preferir.
– Deixe, não é preciso, talvez esteja meio cansado.
Nossa conversa resumiu-se nisso. Continuei meu trabalho. Mais ou menos de dez em dez minutos, levantava-me para ir buscar a pilha de telegramas que se amontoavam ao lado da sua máquina de escrever – mensagens batidas em três cópias.
Uns 20 minutos depois de nossa conversa, observei que Morgan abrira a segunda linha e utilizava as duas máquinas de escrever. Pensei comigo que era algo meio fora do comum, uma vez que não chegara nenhuma notícia verdadeiramente urgente. Na vez seguinte que me levantei, apanhei os textos das duas máquinas e voltei ao meu lugar para separar as mensagens duplas.
A primeira linha fornecia as informações habituais, que me limitei a percorrer com a vista. Depois peguei o segundo maço. Lembro-me perfeitamente do que li, porque se tratava de uma cidade cujo nome nunca ouvira antes: “Xebico”. Eis o telegrama:
Xebico, 16 de setembro. Comunicado CP.
“O nevoeiro mais espesso em toda a história da nossa cidade apareceu ontem, às quatro horas da tarde. Toda a circulação foi interrompida. As lâmpadas de intensidade normal não foram suficientes para atravessar a neblina que aumentou gradativamente. Os especialistas da cidade não entraram num acordo sobre as causas prováveis do fenômeno, e o serviço de meteorologia local afirma que isso nunca se produziu antes na história da cidade. Ontem à noite, às 19 horas, as autoridades municipais…
(continua)”.
Nada muito extraordinário para o escritório central de uma agência. Mas, como disse antes, o nome da cidade me deixou intrigado. Quinze minutos depois, fui buscar um outro maço de notícias. Morgan estava afundado em sua cadeira. Tinha afastado o abajur da lâmpada, de sorte que a luz caía unicamente sobre as duas máquinas de escrever. O segundo comunicado trazia a menção:
“Complemento Nevoeiro
” Às 19 horas, o nevoeiro aumentou ainda mais. Todas as luzes estão agora invisíveis e a cidade está mergulhada numa escuridão profunda.
O fenômeno apresenta uma particularidade: o nevoeiro veio acompanhado de um odor nauseabundo, diferente de tudo o que se conhece.”
Embaixo, como é costume, estava a hora, 3h 27 min e as iniciais do telegrafista, J. M. Quanto à segunda linha, havia apenas um telegrama na pilha.
“Segundo complemento nevoeiro em Xebico.
As opiniões são muito diversas a respeito da origem do nevoeiro. Uma das mais espantosas é a do coveiro da cidade que, em estado de histeria, entrou correndo em nossos escritórios e afirmou que o nevoeiro começou no cemitério da cidade.”
Forneceu o seguinte detalhe: “o nevoeiro apareceu primeiro na forma de um manto cinza muito fino, que se estendia junto ao chão, em cima das sepulturas. Depois começou a subir cada vez mais alto. Uma brisa subterrânea parecia soprar em ondas que se separavam e depois se uniam. As caudas do nevoeiro que se contorciam davam à neblina formas estranhas. Até que alguma coisa começou a se mexer no meio dessa atmosfera muito espessa. Dei meia volta e corri para longe desse lugar maldito. Atrás de mim ouvi os gritos que vinham das casas vizinhas ao cemitério”.
Embora a história do coveiro não tenha sido recebida com muita convicção em nossa cidade, um grupo foi escolhido para examinar o local. Logo depois de terminar sua narrativa, o coveiro perdeu os sentidos, e foi removido para o hospital.
Curioso, não? Foi com um sentimento de receio que fui buscar uma nova pilha. Morgan não se mexia. O único ruído que ouvia na peça era o dos receptores. Havia mais notícias vindas de Xebico:
“A turma do socorro — que saiu às 23 horas para investigar uma narrativa estranha sobre a origem do nevoeiro, que desde ontem ,mergulhou a cidade nas trevas — ainda não voltou. Uma segunda turma foi enviada ao local.
Nesse meio tempo o nevoeiro continua aumentando, por mais impossível que pareça. Infiltra-se pelo vão das portas enche o ar de um cheiro desagradável de mofo. É opressivo. Os moradores saíram de suas casas e se reuniram na igreja, onde os padres recitam orações. No meio das lufadas de vapor que encobrem uma parte da nave, um sacerdote reza. Os moradores gemem e fazem o sinal da cruz.
Na direção do subúrbio, ouvem-se gritos proferidos por vozes desconhecidas. Ecoam no meio do nevoeiro, e possuem uma tonalidade grave, estranha e irregular. Fora isso, a noite apresenta-se calma e sem vento. A segunda turma de socorro…
(continua)”.
Sou um indivíduo calmo, mas não consegui dominar-me e fui até a janela. Será que me enganava? Mas não via na rua um ligeiro princípio de neblina. Na sala do jornal, o ruído da máquina de escrever parecia ter aumentado de velocidade. Morgan continuava imóvel. Sua cabeça estava caída sobre os ombros. Batia as notícias que chegavam nas duas máquinas. parecia dormir. Talvez dormisse. Mas não, as teclas se moviam interminavelmente, linha após linha, sem interrupção e sem esforço. Fui até a cadeira de Morgan e fiquei atrás dele, lendo o texto dos telegramas:
Flash Xebico CP.
“Este escritório não dará mais notícias. Não recebemos nenhuma mensagem nos últimos 20 minutos. Estamos cortados de exterior e até mesmo das ruas que estão sob nossos pés… Permanecerei na linha té o fim…
Da minha mesa posso ver a cidade aos meus pés. Dada a localização desta sala, no décimo terceiro andar, tenho uma vista panorâmica. Mas ,neste momento, enxergo apenas um manto espesso de escuridão. Creio que os gemidos vindos dos subúrbios são os últimos instantes dos moradores moribundos. Os gritos são cada vez mais fortes. Aproximam-se do centro da cidade. O nevoeiro cobre tudo. Em vez do muro opaco e impregnado de um vapor nauseabundo, agora é uma massa informe que turbilhona. De tempos em tempos, essa massa se divide, e enxergo rapidamente as ruas embaixo.
Um grande tumulto humano chega até minha janela, mas é dominado pelo imenso assobio do vento que não se pode ver nem sentir. O assobio está se aproximando agora. Está exatamente embaixo do edifício. Senhor!
Durante um segundo, o nevoeiro se afastou e vi as ruas! esse nevoeiro não é apenas vapor! Tem vida! Ao lado de cada pessoa que chora e geme, há um vulto! Como essas formas se agarram! Cada uma tem seu habitante! Homen e mulheres estão deitados no chão. Deitados de barriga pra baixo. Os vultos do nevoeiro ajoelham-se ao lado deles. São — não ouso dizer o que são…
Os corpos contorcidos foram despidos de suas roupas. São consumidos lentamente.
Uma parede de vapor quente e nevoento toma conta de tudo. Não vejo mais nada. Lá embaixo, o muro de vapor muda de cor. Parece iluminado do interior por um fogo. Não, enganei-me. As cores vêm do alto, são os reflexos do céu. Os céus estão em brasa. As chamas se movem; misturam-se umas às outras. As cores se deslocam. São tão brilhantes que ferem meus olhos…
Principiaram a turbilhonar em formas complicadas. As luzes lampejam a uma velocidade incrível. Um verdadeiro caleidoscópio de brilho sobrenatural.
Acabo de fazer uma descoberta. Não há nada perigoso nessas luzes. Elas irradiam uma espécie de alegria. Mas a força delas é dolorosa.
Enquanto observo, elas e aproximam cada vez mais, percorrendo um milhão de quilômetros em cada salto, milhões de quilômetros à velocidade da luz. Sim ,é a luz, a quintessência de toda luz. Logo abaixo, o nevoeiro se transforma numa neblina resplandecente, repleta de jóias, da cor de um arco-íris feito de mil espectros diferentes.
Vejo as ruas. Como! Estão cheias de gente! As luzes se aproximam. Elas me envolvem, me rodeiam. Eu…”
A mensagem interrompeu-se. A linha de Xebico não funcionava mais. Sob meus olhos, no círculo estreito e luminoso do abajur verde, os caracteres pertos não andavam mais, letra após letra, na extensão da página.
A sala parecia inundada por uma calma solene. Abaixei os olhos em direção a Morgan. Suas mãos estavam caídas. Seu corpo dobrado pra frente. Virei o abajur, dirigindo a luz para seus olhos. Seu olhar estava imóvel e fixo.
Dei um passo para o lado e chamei Chicago. Um segundo depois, o ruído do receptor me trouxe a resposta. Como? Devia haver engano. Chicago afirmava que a segunda linha não tinha funcionado durante a noite inteira.
– Morgan – gritei -, Morgan! Acorde, não é verdade. Fomos enganados!
Na minha impaciência, segurei-o pelos ombros. Seu corpo estava frio. Estava morto há muitas horas. Seria possível que seu cérebro sensibilizado e que seus dedos funcionando automaticamente continuassem a registrar as impressões, mesmo depois do fim?
Nunca mais vou dirigir uma turma noturna. Se procurarem no atlas do mundo, vão ver que não existe cidade com esse nome — Xebico.
FIM