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Sob a sombra do obscurantismo: Natal, o bispo e o candidato a prefeito

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Por Alipio de Sousa Filho

Professor de sociologia da UFRN

Matérias na imprensa de Natal fizeram-me lembrar da canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque. Um bispo, pretensioso, talvez fantasiando que se encontra ainda na Idade Média, recebe, no palácio episcopal, um dos candidatos a prefeito da cidade, que, em atitudes contorcionistas, vai até ele se desculpar de seus posicionamentos em campanha sobre o aborto e em favor de uma educação escolar contrahomofóbica. O candidato, Carlos Eduardo Alves, não apenas procura se desculpar diante do bispo, nega o que propõe em seu programa oficial, registrado junto ao TRE-RN.

Que atraso! Em pleno século XXI, um candidato a prefeito de uma das capitais brasileiras vai ao bispo confessar seu pecado, pedir perdão!, e nega o que antes era sua plataforma política para a cidade.Seu corpo, em foto publicada no Jornal de Hoje, revela tudo: está curvado diante do bispo, tenso, segurando-se na cadeira, como se estivesse temendo sua condenação e envergonhado do que disse antes aos seus eleitores, em entrevistas, em programas de TV, rádio etc. A foto estampa a patética submissão do candidato ao religioso, como se este representasse um poder ao qual o candidato devesse reverência e obediência. Uma cena abolida da história moderna das sociedades ocidentais, há mais de dois séculos, que, protagonizada por um candidato a prefeito, deixa muito o que pensar sobre sua disposição a realizar o que promete, sobre sua capacidade de enfrentar pressões indevidas.

A questão é: por que o candidato Carlos Eduardo Alves negou uma parte de seu programa que pode ser considerada uma importante proposta para nossa cidade hoje, por pura pressão de uma Igreja retrógrada? Por que ele abre mão de sua proposta de governo que expressa avanços emancipatórios importantes, que constam de programas e políticas de todas as importantes cidades do mundo, de cartas e deliberações internacionais que o Brasil é signatário? Então, que era sua proposta, registrada no documento entregue ao TRE-RN? Puro oportunismo político? Pretendia os votos do segmento LGBT, mas nada realizaria se eleito? Não estava convencido do que defendia, não acreditava no seu governo como protagonista de uma educação contrahomofóbica? Que faz um candidato a prefeito explicando-se a um bispo? Acha ele que a cidade, suas elites, seu povo deve ainda obediência ao pastor cristão, como se estivéssemos na velha vila medieval em que prelados tinham poder de vida e morte sobre seus habitantes? Como se pratica na esfera político-pública de nossa cidade o princípio da separação entre Igreja (ou religião) e o Estado, modernamente estabelecido desde a Revolução Francesa?

Vergonhosa a posição de um candidato que, face ao primeiro puxão de orelha homofóbico, abre mão de propostas positivas que, certamente, encontram apoio em diversos segmentos da cidade de Natal, que seja LGBT ou não.  Que se pode esperar de um candidato que, diante da menor pressão, declara abrir mão de seu projeto, renega suas próprias propostas? Abrirá mão também de outras ideias registradas em seu programa, quando receber pressões de outras corporações, agora ou depois, se for eleito?

E o que pretende a Igreja da Homofobia de Todos os Dias? Vai continuar pressionando candidatos contra seus posicionamentos emancipatórios, civilizatórios? Vai continuar praticando chantagens políticas homofóbicas todas as vezes que temos candidatos e políticos com propostas críticas e emancipatórias relativas às reivindicações de gays, lésbicas e trans? Uma Igreja que, contraditória e hipocritamente, abriga, em seu interior, muitos homossexuais (e que, sem eles, não sobreviveria), alguns deles cônegos, monsenhores e bispos, sufocados pela repressão de suas própriasordens religiosas, mas que não deixam de vivenciar seus desejos, seja aberta, seja clandestinamente (na maioria dos casos). Oh, senhores pastores, poupem Natal de suas hipocrisias e indevidas interferências! Cuidem de suas igrejas, verdadeiros sepulcros caiados!,e deixem a cidade livre do obscurantismo religioso, já de si tão maltratada por outros obscurantismos. Deixem de se meter em assuntos que não lhes concernem: por vocês, o Brasil não estaria, hoje, fazendo pesquisas com células tronco, não teríamos o divórcio, não teríamos o reconhecimento das uniões e casamentos gays, não se usariam preservativos nas relações sexuais, mulheres não tomariam pílulas contraceptivas e continuarão a ser tratadas como criminosas por praticarem o aborto. Logo vocês, que não casam, não têm filhos, que não enfrentam problemas de direitos protetivos ou a ausência destes em suas vidas, que não enfrentam a discriminação e a violência homofóbica, e que não pagam o preço das mazelas da desigualdade social e econômica, protegidos que estão pela riqueza e armadura da Igreja e do próprio Estado.

A palavra da Igreja Católica, como a de todas as religiões, em assuntos políticos e de Estado, no tocante à promoção de direitos, legislação, políticas públicas, é intromissão indevida, recusada em todas as nações politicamente emancipadas. Quanto aos candidatos a prefeito de Natal, o que a população espera é coragem política daqueles que desejam governar a cidade e não a frouxura do bater em retirada na primeira pressão, negando suas próprias ideias e projetos.  Como políticos, sabem que, por definição e sua natureza própria, o Estado moderno é laico, não podendo ser rebaixado a visões religiosas, pois naufragará e junto levará a sociedade para o malogro de sua emancipação cultural, moral e política.

Natal não pode mais se deixar governar pelo atraso, conservadorismo, obscurantismo e autoritarismo da velha política. Aquela que se mistura à religião, que se subordina a poderes econômicos, a grupos oligárquicos, desprezando os interesses da maioria e as demandas de setores discriminados, excluídos, marginalizados.