Quando Ricardo Siqueira saiu do coma, nem mesmo o mais longo devaneio o teria levado à suposição que um livro seria sua salvação. O acidente de carro na rodovia federal o derrubou na cama do hospital no estado letárgico que desenganou médicos e familiares. As esperanças de retorno eram minguadas, alimentadas a colheradas por alguns poucos que cultivavam uma fé inabalável de que ele recobraria a velha consciência que o fazia notável entre seus pares. Acima de tudo era uma lástima que uma mente privilegiada como aquela quedasse inútil em razão de um traumatismo provocado pelo arremesso de seu frágil corpo para fora do veículo, quando este encontrou a lateral de um caminhão guiado por um motorista que cochilou no volante. Na batida, o motorista acordou, e ele, Ricardo, cochilou para não acordar pelos próximos dois anos.
Neste par de anos em coma, Ricardo esteve como que suspenso num mundo todo branco, onde sua consciência flutuava lívida pelos mares do subconsciente. O tempo não existia e tudo o que se passava diante dos seus olhos cerrados para fora tinha a marca da eternidade. Os ruídos externos a este mundo de fantasia eram audíveis, porém incompreensíveis; pareciam vir de outro plano onde imperava a algaravia de vozes em conflito, como que gemendo de dor, principalmente pela dor alheia. Mas ele não sentia dor. Seu cérebro repousava, não mandava ordens aos membros, como se não quisesse gastar forças com outra finalidade que não a contemplação do sublime, das reminiscências que o faziam meditar, e principalmente pelo enorme espírito de Deus que sorria luminoso, pairando por sobre as águas. Foi quando ele ouviu aquela voz poderosa a penetrar dentro da consciência:
– É hora de voltar.
E Ricardo abriu os olhos e se deparou sozinho no quarto do hospital, ofuscado pela luz flamejante do sol que adentrava por entre as persianas da janela. O ruído do maquinário que o mantinha vivo era surpreendente; não imaginava que o som da vida fosse assim tão monofonético, irritante mesmo.
Mas não importava. Como que por impulso apertou a campainha e pediu à enfermeira um copo d’água, e deixou para trás a lembrança de viver no subconsciente.
Depois de todas as manifestações de alegria por parte da família e de todas as promessas pagas pela graça alcançada, era hora de Ricardo retomar sua velha vida. Neste intervalo de tempo ele fora aposentado, de modo que não mais precisaria trabalhar para se sustentar, já que seu estado de saúde ainda requeria cuidados, pelo menos por enquanto. A vida monótona de aposentado e convalescente de alguma forma o levou a buscar uma nova ocupação: descobrir o que se passou na sua cabeça quando estava no coma. Mas sentia preguiça de fazer qualquer coisa que não fosse ficar deitado na sala vendo televisão; nem no seu escritório tinha vontade de entrar. Foi quando um dia se sentiu realmente inútil; acordou às três horas da tarde e viu que todos da casa tinham ido trabalhar, enquanto ele ficara ali babando no tecido do sofá encardido pelo seu suor. Ergueu-se e resolveu criar vergonha e pôr em prática o novo sentido da sua vida.
Com muito esforço tentou lembrar o que sentira, espremendo alguma revelação escondida no recôndito mais remoto de sua mente. Não, ele não lembrava o que era estar em coma, mas desejava senti-lo por alguns instantes, ou pelo menos saber o que pensava naquele momento. Em vão. Sua consciência antes fluída não coseguia mais penetrar naquela névoa suspensa no mar de contemplação curiosamente desejada, como se tivesse sido desligada para voltar à consciência dos fatos terrenos.
– Deve ser alguma sequela do acidente – pensava ele – mas não é nada que um treino não resolva.
Ainda tomado de frustração por não ter domínio sobre seu subconsciente, Ricardo achou que seria uma boa ideia exercitar a mente a fim de estimulá-la a encontrar as lembranças do coma. Desafiando o próprio domínio sobre sua vultosa biblioteca, adentrou nela pela primeira vez depois do infortúnio, colheu a esmo um volume que encontrou na estante e pôs-se a folheá-lo com ardor incomum. Os olhos lépidos vistoriavam as linhas, engolindo as palavras com avidez desmedida, sem deixar passar nada que fosse importante. Aquelas palavras lhes eram familiares e traziam de volta algo que ele sentia que devia conhecer. O coração palpitava de emoção a cada linha devorada, fazendo despertar aquela velha sensibilidade, presenteando-o com a esperança de que poderia desvendar os mistérios do estado de coma.
Ao passar a primeira página viu que no verso jazia uma pequena mancha vermelha, exatamente no lugar onde tocara para passá-la. Não ligou e continuou a leitura daqueles escritos.
– Sei que já li esse livro, mas não me recordo quando!
Pensava já furioso por não encontrar o tão desejado estado de suspensão da consciência. Virava as páginas com maior avidez na tentativa de empurrar sua mente para um patamar superior, mas sempre notando que no rodapé luzia o púrpuro autógrafo desconhecido que lhe roubava um pouco de concentração. Mas ele seguia e o volume o engolia, o prendia em suas páginas amareladas, sufocando toda e qualquer resistência que pudesse afastá-lo daquela leitura.
Cada página virada era como se o trouxesse de volta para sua vida, apesar de não descurar do desejo de encontrar os mistérios escondidos em cima da cama do hospital que o abrigou por dois anos. Lutava tenazmente contra o regresso ao antigo mundo que já o recebia de braços abertos, mas a única coisa que tirava sua atenção era a mancha vermelha no rodapé da página. Parecia um chamado para a vida real, em contraponto ao imperativo mental que o impelia a garimpar a mina daquele meandro desconhecido, mas que lhe parecia agradável e superior. Tinha certeza de que havia desfrutado de algo digno de ser conhecido e, portanto, merecedor de um esforço maior de sua parte para encontrá-lo novamente.
As páginas se sucediam até encontrarem a metade da brochura sem que tivesse a ventura de alcançar seu desiderato. As manchas vermelhas aumentavam à medida que ia chegando ao fim. Um desânimo o abateu, fazendo com que sua atenção fosse canalizada cada vez mais para aquelas misteriosas vermelhidões que coloriam o livro cujo título ainda não era conhecido. O ardor de sua investigação desvanecia, e Ricardo começou a considerar que estava arrostando empresa muito acima da sua capacidade: adentrar no espaço recôndito onde só quem tinha a chave era ninguém menos do que Deus.
– Tenho eu condições de desafiar tamanha autoridade?
Pensava ele ao mesmo tempo em que virava a última página do livro, encontrando na contracapa a seguinte inscrição:
“Notas íntimas, por Ricardo Siqueira”.
Ao ver a inscrição assaltou-lhe a constatação de que estava a ler o seu velho diário. Tomado desta surpresa, caiu em si novamente e olhou ao seu redor. Viu sua mesa de trabalho com as coisas exatamente nos mesmos lugares que deixara antes do acidente, intocadas, aguardando as mãos familiares do seu dono. Divisou seus livros empoeirados, desejosos por uma limpeza manual. Algo o tocou profundamente. Agarrou o diário e o folheou com rapidez: suas paginas estavam todas manchadas daquela tinta vermelha, começando pequenas, e, ao fim, maiores, invadindo o espaço da escrita. O dedo polegar encostado na contracapa soltava a mesma tinta rubra, denunciando que, na verdade, sangrava abundantemente, esfregando na sua cara a sua condição humana e mortal. Sentiu um calafrio horrendo e fechou de uma vez o diário. Subitamente a sangria estancou e, após sacar o seu lenço e limpar o local de onde jorrava o sangue, viu que nenhuma ferida abria espaço para sua passagem.
Olhou para o céu que sorria azulado pela janela e deixou cair uma lágrima na capa do seu livro, o livro de sangue que o havia trazido de volta à realidade temporal, fechando por enquanto o conhecimento dos segredos existentes no mundo do subconsciente, e reabrindo seus olhos para a vida, aquela que não queria voltar a viver.