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Mas já?! Copa do Mundo, Obras e Desapropriações

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Por volta de abril ou maio de 2011 foi criado em Natal o Comitê Popular da Copa. Composto por setores da sociedade civil organizada e não organizada, tinha o Comitê o objetivo de defender a população das usuais arbitrariedades que geralmente vem no pacote da realização de megaeventos. Em cada cidade-sede foi idealizado um comitê nesse sentido. Em dezembro do mesmo ano nascia a Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras de Mobilidade da Copa de 2014 – APAC-2014 –, composta majoritariamente por moradores dos bairros do Bom Pastor, Quintas e Nordeste, todos situados na Zona Oeste de Natal, região mais afetada pelas obras.

A ideia da associação veio da crescente necessidade de uma representação coletiva dos atingidos pelas obras – representação tanto judicial como extrajudicial, provocando audiências, discussões, reuniões e encontros com autoridades e secretarias responsáveis – SEMOPI, SEMURB e SEHARPE, principalmente -, apontando com clareza as inúmeras impropriedades técnicas encontradas no projeto inicial, elaborado sem participação da população e sem a realização, dentre outras coisas, do relatório e dos estudos de impacto ambiental e de vizinhança. Estudantes, advogados, moradores das áreas atingidas pelas obras, arquitetos, urbanistas e professores da UFRN foram incisivos na identificação das atecnias do projeto original, a ele apresentando alternativas  alinhadas às exigências legais em acordo com os direitos básicos ao meio ambiente e à moradia, evitando, assim, as abusivas e desnecessárias desapropriações.

Teimosia

Como resposta, a associação encontrou tão somente a contumácia do município em reconhecer as gritantes falhas do projeto. Tamanha falta de resiliência se consolidou quando o titular da Secretaria Municipal de Juventude, Esporte, Lazer e Copa do Mundo da FIFA defendeu irrestritamente o atual projeto por ocasião do programa Grandes Temas, da TVU, afirmando despautérios como o de que haviam sim sido realizadas audiências prévias junto à população, não participando o Comitê por pura desídia de sua parte. Na mesma linha, o então Procurador-Geral do Município, com uma empáfia que pareceu fisgada diretamente das pré-revolucionárias catacumbas absolutistas, foi também categórico na defesa do projeto, afirmando, com uma comovente sensibilidade social, que quem discordasse ou fosse afetado pelo mesmo que resolvesse na Justiça (a afirmação se deu durante audiência da Câmara Municipal, boicotada, obviamente, pelo consórcio governista). A prefeita, por sua vez, anunciou com pompas eleitorais o início e a certeza da execução das obras, para o desespero dos que se viam na iminência de serem expulsos de suas casas. O secretário da SEMOPI à época também engrossou o intransigente coro da teimosia: o projeto é esse e não será modificado.

Ciente da falta de perspectivas e de qualquer reviravolta no posicionamento do município, não restou à associação alternativa que não ajuizar ações coletivas pleiteando o não-início das obras até o definitivo cumprimento da legislação que as regula.

Enquanto isso, a Prefeitura notificava moradores do Bom Pastor, Bairro Nordeste e, em especial, da Rua Compositor José Luiz, nas Quintas, oferecendo valores irrisórios para se retirarem dos seus imóveis de modo a poder dar início às obras no entorno do viaduto da Urbana.

Bipolaridade

Acontece que, em recente reportagem do Diário de Natal datada do dia 10 de agosto, veiculou-se notícia tratando do que seria uma drástica mudança no posicionamento do município. Trouxe a reportagem que a atual secretária municipal de obras, Tereza Cristina Vieira Pires, e o novo titular da SEMOPI, Júlio Eduardo dos Santos, apresentaram um projeto alternativo ao original; aquele mesmo, O Intocável, antes ferrenha e caninamente defendido pela súcia de aspones do executivo municipal.

Sobre as mudanças no projeto, a secretária afirmou o seguinte: “criar um novo traçado para o projeto do viaduto da Urbana seria feito no sentido de chegarmos à possibilidade de até não precisar mais de desapropriações na área. Com isso, evitaríamos a desapropriação de 230 imóveis entre pessoais e comerciais. O ganho social seria estupendo e não atrapalharia a construção do viaduto da Urbana”.

Micarla, espertalhona, arrematou: “O nosso principal problema são as questões jurídicas envolvendo as desapropriações dos imóveis. O total de desapropriações é de 434 imóveis, sendo 55 só no entorno da Companhia de Serviços Urbanos de Natal para dar passagem ao Complexo Viário da Urbana”.

Ora, o município, antes convicto da lisura e legalidade do projeto a ponto de defendê-lo com absolutos ares de irreversibilidade e arrogância, muda agora o imutável, reconhecendo a possibilidade de modificar um projeto que, apesar de imodificável, contém aberrações as quais até o mundo mineral conhece. Tudo após as inúmeras provocações do Comitê Popular da Copa, incluindo duas ações judiciais questionando as incontáveis desvirtuações do projeto original.

Arregada

Não é certo se irá realmente ocorrer alguma modificação no projeto, apesar da sinalização positiva dada pelos novos responsáveis pelas obras. Mas algumas coisas são inegáveis, a começar pelo fato de que essa reavaliação não nasceu simplesmente de um intempestivo lampejo de bom senso, sensibilidade e planejamento do município, mas como resultado de uma diuturna pressão popular que, movida pela irresignação, não se intimidou mesmo com a poderosa FIFA do outro lado. Uma verdadeira lição de cidadania, mostrando que o exercício de uma democracia realmente participativa, diferentemente do que apregoa o stablishment político e midiático, não se exaure no voto, para o desespero de parte da nossa classe política.

Outra provável razão, como a própria prefeita deu a entender, pode estar na inesperada resistência judicial dos moradores em aceitar os trocados oferecidos pela prefeitura para a desapropriação de suas casas. Diante da cruel e abusiva insignificância dos valores e da grande probabilidade de serem aumentados em juízo, não teria o município caixa o suficiente para pagar um valor muito maior que o previsto inicialmente. A solução foi, no dito popular, arregar aos reclamos por um novo projeto, mais eficiente, econômico e com menores ônus à sociedade.

E quanto aos moradores ameaçados de desapropriação que sofreram surtos de angústia e desespero e que tiveram seu estado de saúde fortemente afetado em virtude do constante terrorismo publicitário governamental de que as obras de mobilidade iriam sair na marra? Dificilmente um procurador-geral do município irá repetir o equívoco do anterior e recomendar que procurem a Justiça para sanar suas insatisfações nesse ponto. É possível que as pessoas realmente sigam essa orientação.