Por Paulo Afonso Linhares, Professor da UERN
Há décadas que um dos paradigmas mais firmes no Direito Administrativo brasileiro tem sido o sigilo das remunerações das diversas categorias de servidores, o mesmo ocorrendo com a preservação do sigilo acerca do valor da remuneração dos empregados, no âmbito das relações laborais nas atividades privadas, tudo como apanágio do cidadão a merecer aquela proteção inserida no inciso X, art. 5°, da Constituição da República. Em suma, o resguardo dessa informação por determinação legal sempre foi vinculado ao caráter personalíssimo da remuneração, seja ela vencimentos, proventos, pensões, soldos ou salários. Enfim, esse sigilo se incorporou à tradição jurídica brasileira. Aliás, sempre foi de bom alvitre não se perguntar: a idade, para as mulheres; com quem vota e quanto ganha, para qualquer pessoa.
No entanto, em estágio evolutivo das sociedades humanas os paradigmas cambiam com as transformações sociais, de modo que cada era de vivencia histórica tem seus próprios paradigmas que, com efeito, nada mais são que valores socialmente eleitos e que, ou se tornam regras morais ou normas jurídicas. A propósito disto, ressalte-se que, desde o fim da ditadura militar brasileira (1964-1985) e, principalmente, depois da Constituição de 1988, uma série de novos valores têm sido incorporados pela sociedade, para atribuir um novo significado à própria questão da cidadania.
É bem certo que o alargamento da democracia (a que o general Golbery do Couto e Silva chamava de “diástole”), aliado à ampliação dos espaços públicos e à crescente conscientização do papel do cidadão no controle da atividade estatal, tem forjado um novo modelo de participação política no qual a transparência das ações e atividade do Estado e seus agentes faz com que parcela ponderável dos cidadãos tenha acesso a um fenomenal volume de informações de modo praticamente instantâneo, através de um arco midiático cada vez mais amplo, como é o caso das redes sociais e de outras modalidades informacionais via Internet, bem assim das mídias eletrônicas tradicionais (TV e rádio), além das mídias impressas.
O Estado cada vez mais amplia os canais de comunicação/interação com a comunidade de cidadãos, de modo que certas práticas – até bem pouco tempo inimagináveis – se tornam corriqueiras. Com as exigências impostas pela necessidade de transparência, o Estado tem sido de algum modo compelido a mostrar as entranhas, sobretudo, no tocante às diversas modalidades de uso dos recursos públicos e das relações daquele com seus agentes. Depois da questão do nepotismo – que mexeu em importantes nichos de privilégios corporativos e clientelísticos – veio à tona recentemente o caso das remunerações dos servidores públicos, uma das “caixas pretas” mais protegidas da República, mesmo porque são por demais conhecidos os vícios acumulados por algumas repartições públicas permissivos de vantagens e privilégios em favor de certas castas de servidores do Estado.
Em algumas delas, alias, até hoje não foi respeitado o princípio inafastável de acesso às carreiras do serviço público pela via do concurso de provas ou de provas e títulos. O concurso público pode até nem ser a melhor forma de recrutamento dos servidores públicos, mas, é a única condizente com o princípio da igualdade tão importante para o Estado Democrático de Direito. Em mais de cem anos de funcionamento, por exemplo, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte jamais realizou um concurso público para recrutamento de seus quadros técnico-administrativos. E o mais interessante: talvez se todos os atuais servidores do Legislativo estadual fossem convocados para estarem num certa manhã na repartição, alguns teriam que ficar nas praças e ruas adjacentes, à mingua de espaço interno na Casa…
Depois de o Supremo Tribunal Federal exibir as remunerações de seus ministros e demais servidores, todos os outros órgãos do Poder Judiciário foram levados a fazer o mesmo, apesar dos choros e ranger de dentes. As divulgações dessas remunerações, em alguns casos, têm causado enormes sobressaltos, dados os valores avultados que apresentem. Uma coisa ficou bem patente: o maior teto remuneratório do serviço público brasileiro – o valor do subsídio do ministro do Supremo Tribunal Federal (hoje de R$ 26.723,13 e com previsão de aumento para R$ 32.147,90) – tem sido olimpicamente desrespeitado em todas as esferas federativas. É claro que dos tantos casos de supersalários que a imprensa tem divulgado nos últimos dias, para estarrecimento da opinião pública, muito não são o que aparentam, pois a eles estão agregados vantagens como o terço (1/3) de férias e a parcela referente à gratificação natalina, além de outras parcelas pagas junto com a remuneração do mês de junho. Entretanto, a imprensa mais dada ao sensacionalismo nem se preocupa em buscar a verdade dos fatos; quer mesmo é escandalizar e expor nomes de supostos “marajazinhos” do serviço públicos. E a opinião pública, entre a excitação e o alvoroço, recrimina essa “farra” com os dinheiros públicos. Alguns desses sortudos de gordíssimos contracheques – que até gostariam de ser “transparentes”, no sentido de passarem despercebidos aos olhos da opinião pública – até pensam em pedir proteção policial com medo de sequestros! É nisso que dá a tal transparência…