Por Jules Queiroz, Advogado
Como é de conhecimento comum, os analfabetos não podem se candidatar a cargos públicos, por proibição constitucional expressa.
Por essa razão, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral exigem, no ato do registro, que os candidatos juntem comprovantes de escolaridade ou declarações de próprio punho atestando a própria alfabetização. Essas declarações dão ensejo, quase que sempre, a impugnações do Ministério Público Eleitoral ou do próprio Juiz Eleitoral, no sentido de realizar testes de alfabetização com os candidatos.
Até aí tudo bem. O teste de alfabetização é prova idônea, a priori, a detectar o analfabetismo de candidato.
Ocorre que, a meu ver, não há consenso algum entre Juízes e Tribunais Eleitorais acerca do conteúdo desses testes ou sequer o objeto de avaliação.
Como advogado, já vi testes que exigiam apenas que candidato lesse um texto e redigisse uma resposta simples, na maioria das vezes sendo a resposta seu próprio nome ou outra informação pessoal qualquer.
O que me preocupa, na verdade, foram testes que vi que consideravam incorretas as respostas do candidato meramente por erros gramaticais, como a grafia “Veriador” [Vereador]. Outras vezes, a questão estava errada porque o candidato esqueceu um dos sobrenomes da mãe. Já captei o absurdo de ver questões consideradas erradas por falta de acento gráfico! O que querem os juízes? Alfabetizados ou alfabetizadores?
Na verdade, nunca vi nenhuma discussão entre os operadores do sistema jurídico eleitoral acerca do que significa ser analfabeto. A doutrina eleitoral afirma que analfabeto é que “não sabe ler ou escrever”[1].
Esse entendimento acaba por utilizar a língua contra o candidato em um evidente exercício de preconceito linguístico.
Em primeiro lugar, esse critério simplista do “saber ler e escrever” foi utilizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO – nos anos 50. Mostrou-se, à evidência, insuficiente.
Em segundo lugar, ainda que insuficiente, sequer à luz desse conceito antiquado podem pessoas ser afastadas do pleito eleitoral por escreverem mal. À luz desse próprio critério, o sujeito que escreve “Veriado” é tão elegível como o Senador José Sarney, Imortal da Academia Brasileira de Letras.
Uma política inclusiva da Justiça Eleitoral passa por um entendimento mais moderno do que é alfabetização: “a capacidade que uma pessoa tem para engajar-se em todas aquelas atividades em que [o letramento] é necessário para que ela funcione de modo efetivo dentro de seu grupo e comunidade e também para capacitá-la a continuar usando a leitura, a escrita e o cálculo matemático em prol de seu desenvolvimento e do desenvolvimento de sua comunidade.”[2]
Nesse passo, as provas da Justiça Eleitoral devem ser melhor formuladas pelos Juízes. Estes devem considerar a capacidade do candidato de ler e compreender um texto dentro de sua realidade. Os Juízes devem apresentar textos próprios à realidade do agricultor, do padeiro e do sapateiro do interior que têm a intenção de ser candidatos. Devem perceber, além disso, as reações e compreensões dessas pessoas e analisar a alfabetização do ponto de vista da comunicação funcional. Escrever casa ou caza faz muito pouca diferença para aquele que vive em uma feita de taipa.
Paulo Freire escreveu na Pedagogia da Autonomia que “Um dos grandes pecados da escola é desconsiderar tudo com que a criança chega a ela. A escola decreta que antes dela não há nada.” Esse é um pecado que a Justiça Eleitoral não pode mais cometer.