Censo 2010: antigas questões e novos desafios interpretativos à Sociologia da Religião [1]
Ao final do mês de junho de 2012 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou os dados do Censo 2010 relativos à população residente, por situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião no Brasil. Após um longo período de espera, finalmente os cientistas sociais brasileiros poderão substituir os dados relativos ao Censo 2000 em suas pesquisas, exaustivamente analisados durante cerca de uma década. Uma breve observação em parte das pesquisas em sociologia da religião nas últimas décadas apontam que no Brasil está cada vez mais evidente a constituição de um campo cristão plural. Esta seara sociológica no Brasil tem se constituído como uma sociologia do declínio católico e do avanço evangélico em termos quantitativos.
O Censo 2010 corrobora tais tendências e acrescenta números que serão merecedores da análise cuidadosa dos estudiosos da religião. Os novos dados do Censo 2010 apontam que a proporção de católicos segue a tendência de redução observada nas duas décadas anteriores: de 73,8% em 2000 para 64,6% em 2010. Embora o perfil religioso da população brasileira mantenha, em 2010, a histórica maioria católica, esta religião vem perdendo adeptos desde o primeiro Censo, realizado em 1872, como apontado anteriormente. Não é demais acrescentar que essa redução ocorre no meio da população católica tratada como fiel nominal, isto é, dos que declaram vinculação em virtude da tradição – ter nascido no interior de família católica. Em segundo lugar, o segmento evangélico é o que mais cresceu no Brasil no período intercensitário. Em 2000, eles representavam 15,4% da população. Em 2010, chegam a 22,2%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Vale destacar que entre o segundo segmento evidencia-se que 60% da população é constituída por pentecostais, 18,5% de missão e 21,8% não determinados. A terceira constatação é o aumento de adeptos do espiritismo (de 1,3% em 2000 para 2,0% em 2010) e dos sem religião. Em 2000 haviam 12,5 milhões (7,3%) do segundo segmento. Em 2010 os declarantes chegam a 15 milhões (8%). O aumento entre os espíritas mais expressivo foi observado no Sudeste, cuja proporção passou de 2,0% para 3,1% entre 2000 e 2010, um aumento de mais de 1 milhão de pessoas (de 1,4 milhão em 2000 para 2,5 milhões em 2010). O estado com maior proporção de espíritas era o Rio de Janeiro (4,0%), seguido de São Paulo (3,3%), Minas Gerais (2,1%) e Espírito Santo (1,0%) (http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias).
Podemos tecer outras considerações sobre os dados aqui apresentados. Primeiramente, quando se fala de aumento da diversidade religiosa no Brasil, é preciso não desconsiderar que o segmento cristão possui ampla maioria, com 86,9% de adeptos na população brasileira. Isto implica que as tensões e disputas mais evidentes no campo religioso acontecem entre os católicos e evangélicos, sobretudo na mídia, na política, no mercado e na ocupação dos espaços urbanos.
Em segundo lugar, os cientistas sociais não podem esquecer que as pesquisas censitárias não são capazes de compreender qualitativamente as questões relativas à diversidade religiosa. Isto pode ser constatado, inclusive, nas dificuldades quanto às taxonomias adotadas pelo IBGE. Como elaborar classificações capazes de atender a diversidade cada vez mais evidente, principalmente? Embora isto seja em parte resolvido com a pluralidade evangélica, com diversas denominações adotadas para o Censo, entre os católicos a “suposta unidade” dificulta algumas percepções mais sutis ao campo católico.
De fato, os evangélicos ampliaram seu rebanho e sua presença no espaço público, com destaque para a inserção nos meios de comunicação e na suas bancadas políticas. Entretanto, esta tendência não se verifica em todo o segmento de forma homogênea. Podemos, inclusive, afirmar que o crescimento evangélico no Brasil é pentecostal, particularmente neopentecostal. Em algumas denominações de missão (Batista, Luterana, Presbiteriana) o índice de evasão tem sido próximo ou maior que a própria “sangria católica”. As igrejas evangélicas históricas também têm perdido adeptos para as neopentecostais. Algumas, inclusive, estão aos poucos se pentecostalizando, adotado a expressão “renovada” como um diferenciador da sua matriz.
Pode-se questionar ou analisar outro dado, que é estatístico mas que não contribui para uma análise qualitativa do campo religioso evangélico: quem são os evangélicos incluídos no grupo daqueles que não declaram pertencimento a um grupo denominacional, que pulou de pouco mais de dois milhões em 2000 para mais de nove milhões em 2010? Seriam fiéis omitindo o seu pertencimento por estarem vinculados a grupos estigmatizados (Universal do Reino de Deus ou Mundial do Poder de Deus) à semelhança do que ocorria nas décadas passadas com os religiosos da Umbanda e do Candomblé? Ou seriam fiéis vinculados aos grupos dissidentes menores e que se espalham por todos os recantos do Brasil? Qualquer que seja a opção restará aos estudiosos sempre a dificuldade, por ser esse grupo quase 25% do universo religioso evangélico do Brasil. Para que essas respostas possam ser contempladas, as análises precisam ser efetuadas com base nesses dados e nos respectivos questionários utilizados pelo IBGE, mas, principalmente, a partir de novas pesquisas de campo a serem implementadas.
No Brasil, a partir da década de 1990, constatam-se intensas disputas entre católicos e neopentecostais. Nas últimas duas décadas estas continuam, mas também se intensificam entre os próprios neopentecostais, sobretudo entre as denominações que passaram por movimentos de cisma ou rompimento de algum líder espiritual. Até o Censo 2000 a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) alcançava os maiores índices de crescimento. Na década posterior, a Igreja Mundial do Poder de Deus, do apóstolo Valdemiro Santiago, ex-Bispo da IURD, atraiu aos seus cultos parte significativa do rebanho iurdiano e de outros grupos do protestantismo histórico, dos pentecostais e dos neopentecostais.[2] A pluralidade religiosa tem gerado um pertencimento difuso no campo religioso brasileiro e, em particular, entre os neopentecostais. E, ao contrário do que se pensa, a contribuição regular do dízimo entre os adeptos é algo desafiador aos pastores, principalmente considerando que estas denominações atuam em camadas de baixa ou baixíssima renda – é bom ressaltar que os grupos pentecostal, neopentecostal e históricos renovados têm alcançado, cada vez em maior número, fiéis vinculados às camadas médias da sociedade -. Mas é provável que as tensões e disputas por fiéis se intensifiquem entre as denominações com estratégias e bens simbólicos de salvação muito semelhantes.
Nesse universo pentecostal, neopentecostal ou simplesmente de campo religioso pentecostalizado, destaca-se a consolidação de crescimento da Igreja Evangélica Assembleia de Deus. Somos tentados a pensar que essa denominação ficou imune, e por isso continuou crescendo, aos exageros dos rituais de cura divina presentes e intensificados na Igreja Mundial do Poder de Deus e do uso da Teologia da Prosperidade ainda em evidência na Igreja Universal do Reino de Deus. Personagens como o Pastor Silas Malafaia da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo é um bom exemplo do trânsito entre os paradigmas presentes nos principais grupos denominacionais do campo religioso evangélico brasileiro.
O aumento dos sem-religião não significa necessariamente o aumento da descrença religiosa. Não resta dúvida que a parcela de ateus no Brasil esteja aumentando. Mas parte dos sem-religião acredita no sobrenatural ou não o negam por completo, como no caso dos agnósticos. Alguns indivíduos participam ou participavam de religiões institucionais sem poder de regulação, frequentadas por indivíduos/grupos que a partir delas “fazem parte da tradição”. Cada vez mais algumas religiões perdem sua capacidade de regular a vida dos seus adeptos, que optam por escolhas individuais de consumo de bens simbólicos, fazendo bricolage de diversas religiões, sem pertencimento a qualquer religião institucionalizada. Não é difícil encontrarmos altares familiares com imagens de santos católicos, buda, duendes, orixás, figas, entre outros bens simbólicos.
Por fim, há de se questionar, do ponto de vista sociológico, por que algumas denominações estão ampliando sua participação no espaço público e outras estão se retraindo? Aqui vale uma das máximas de Pierre Bourdieu: toda teodiécia é sociodicéia. Nenhuma sociedade aceita um sistema religioso estruturalmente divergente dela (BOURDIEU, 1998). Nesse sentido, no cenário atual, as religiões que fazem sucesso são aquelas que se adaptam às necessidades e desejos de um público alvo. A religiosidade institucionalizada tradicionalmente (catolicismo e evangélicos de missão) sofre hoje um profundo esvaziamento.
Em sua visita ao Brasil em maio de 2007 o papa Bento XVI declarou que não estava preocupado com a evasão de fiéis. A prioridade era pela qualidade de adeptos e não pela quantidade. Será que o Vaticano não está se importando com a pentecostalização do pais mais católico do mundo? Acreditamos que não. Para além dos casos de pedofilia no clero, das críticas as pesquisas com embriões, da luta contra a legalização do aborto e do casamento homossexual, o Brasil apresenta uma razão mais estrutural para continuar tirando o sono de Sua Santidade.