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Da função sagrada do Rock’n Roll

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Sob certo ângulo, um festival de rock parece quase sempre tudo igual; o cenário e os atores, as tribos e as indumentárias, a comida e o lixo, os banheiros e os micróbios, os amigos bêbados e as guitarras, a maconha e os sorrisos… Onde quer que se vá há algo de habitual, seja em Natal ou Estocolmo. Isso de modo algum se deve a pobreza ou uniformidade das pessoas envolvidas e que produzem e dão vida a esses festivais. A experiência do rock é universal, pois desde o início o rock’n roll é filho da globalização. Se o pai do rock é o diabo, sua mãe é a mais devassa das prostitutas, o capitalismo.

Mas, afinal, sob a disfarçada mesmice, o que move as pessoas em direção a esses festivais? O que faz de uma festa de rock algo tão atraente e arrebatador? As respostas podem ser variadas; a diversão, o entretenimento, o lazer, desopilar a cabeça da rotina pouco potável da semana, reunir amigos, etc.. Mas há muitas formas de se obter isso. Essas respostas gerais pouco dizem sobre a experiência do rock.

A uniformidade detectada à primeira vista é produto de um “olhar de fora”, um olhar distanciado. Assim, se, ao contrário, partimos de um olhar de “dentro do fluxo”, a aparente uniformidade cede o lugar a outro tipo de experiência dos sentidos. O principal sentido, aquele que genuinamente importa aqui, não é mais o olhar de um observador especialista mas o ouvir de um amador em iniciação. Através dele sente-se a elevação da força tomar conta do peito com os primeiros ruídos, que, aos poucos, convertem-se em movimentos ondulados, abreviaturas de sons que são a mais perfeita tradução das forças e formas do cosmos, e que atingem os tímpanos como eletrochoques da consciência.

O rock & roll é uma descarga de afetos. E, se experimentado coletivamente, como nos festivais, funda na reunião dos corpos afetados por meio de um jogo de sons e silêncios um pacto objetivo, uma comunidade efervescente, um mesmo e único corpo tonal cuja força faz cada ponto vibrar e circular; uns dançam, pulam, outros batem cabeça e gesticulam com certo patetismo; tornam-se loucos e crianças, selvagens, possessos e santos alucinados. É por isso que, a música, em geral, está intimamente ligada, desde os primórdios, ao delírio, à embriaguez e à alteração dos sentidos.

Num festival de rock, tudo lembra um ritual antigo de excitação terrível. As rodas de pogo formam uma comunhão mística e alucinada entre os dançantes. Porém, as substâncias mágicas que inalamos ou ingerimos para o torpor coletivo não provêm de plantas ou bebidas mágicas – embora essas, ocasionalmente, se façam presentes também. A magia corre purpuramente pelos cabos, fios e samplers. Nosso ânimo é seqüestrado tecnologicamente.

Talvez, no rock’n roll arda a última reserva daquela necessária e saudável catarse coletiva de que nossa sociedade ainda é capaz de experimentar.