Search
Close this search box.

Os ventres do homem e da mulher

Compartilhar conteúdo:

Esta semana, na UFRN, conversando com uma colega do mestrado, lamentando por não ter podido assistir a sua apresentação de dança do ventre (até porque ela foi chamada de última hora), tirando uma onda porque, supostamente, eu observaria os detalhes da apresentação (ela estava parada havia um ano, e eu fiz uns dois meses, aí parei por motivos que escaparam a meu controle), e eu comento que havia feito dança do ventre… Não, ela respondeu, homens não fazem dança do ventre, homens fazem dança árabe.

Breve silêncio.

Tão breve que não deu nem um segundo e retruquei: como é a história? O que é dança árabe? E por que homens não dançam dança do ventre?

O primeiro argumento dela: homens não possuem ventre, só quem tem ventre são as mulheres. Pedi que definisse “ventre”: porque, até onde eu saiba, “ventre” é o mesmo que “abdômen”, “barriga”, “bucho” – enfim, esse espaço ocupado por órgãos variados. Ela não sabia o que era “ventre”. Oi? Mas ainda arrisquei, pra ver se ela soltava algo mais consistente: arrisquei a hipótese de que “ventre” = “útero”. (A princípio ela não endossou, mas viria a adotar a metonímia mais tarde. Depois disso, cheguei à conclusão de que dança do ventre é mesmo uma coisa histérica (1).). E ela dizendo que o homem não fazia os mesmos movimentos que a mulher, e depois dizendo que homens quem dançavam dança do ventre não são bem vistos e são um fenômeno marginal… Ela ainda soltou um belíssimo argumento de autoridade, segundo o qual a professora com quem fez aula tem dezenove anos de experiência. Fora de brincadeira, eu entendi aonde ela queria chegar, mas simplesmente não soltou nenhum argumento coerente. O ônus da prova cabia a ela, mas ela delegou a mim a tarefa de pesquisar sobre o assunto. O que fiz. Hora de matar a cobra e mostrar o pau.

Segundo a hipótese mais aceita, a dança do ventre teria iniciado no Egito como uma reverência às fertilidades agrícola e reprodutiva. Alguns séculos mais tarde no entanto, apareceram os primeiros dançarinos, tão valorizados quanto as dançarinas – a ponto mesmo de serem preferidos em ambientes misóginos e conservadores. Só a partir do século XIII que tanto homens quanto mulheres passaram a ser malvistos se dançassem (2). O fato, porém, é que existem mesmo danças praticadas tipicamente por homens, como o tahtib (que também pode ser dançado por mulheres). Houve mesmo época em que a dança do ventre esteve ligada à prostituição e/ou  à atividade cortesã. É bom deixar claro um detalhe: a dança do ventre, tal como a conhecemos hoje em dia, possui origem bem recente apesar de suas antecedências milenares, datando da primeira metade do século XX, com o raqs sharqi; a expressão, no fim das contas, é um guarda-chuva pra um conjunto de danças similares nos movimentos e nos propósitos (de fertilidade, feminilidade etc.), e foi criada no século XIX a partir da onda orientalista que passou pela Europa de então.

Acompanhando essa hipótese, existe entre várias praticantes um apego ferrenho a essa tradição “feminilista”. Só mulé dança dança do ventre, só mulé ensina dança do ventre, só mulé saca de dança do ventre – e ai do homem que disser que faz, pois será tachado de gay e despertará a ira dos maridos ciumentos, que só liberam as esposas pra fazerem aula por causa desse preconceito largamente difundido! Olha, a falta à tradição mata; quando não mata, mingua aqueles que não a respeitam. Entretanto, uma coisa bastante simples é a seguinte: há outras mulheres que simplesmente não vêem nada de mal em que homens dancem; eles são igualmente admirados e, por vezes, invejados. Há alguns que põem movimentos feminis na coreografia, ao passo que outros emprestam uma dimensão masculina à dança (3). E, como já disse, há mulheres que também praticam danças masculinas.

Tudo isso está bem longe de ser queer, naturalmente; mas é digno de nota que a heterotopia marcante da pós-modernidade, agrupando em um mesmo topos práticas tidas por distintas e mesmo incompatíveis, de alguma forma perturba os pilares dessa tradição (ou pelo menos o modo como enxergamos tais pilares). Não pretendo de modo algum refutar a hipótese de que a dança do ventre surgiu como um culto à fertilidade. O que está em questão é simplesmente reconhecer que sim, existem homens que dançam dança do ventre, independente de dançarem como mulheres ou de serem gays ou whatever. Ponto. A própria garota reconheceu, na fala contraditória dela, que dançarinos do ventre são um fenômeno marginal; mas só porque é um fenômeno marginal não quer dizer que é um fenômeno inexistente. Homens passam roupa, mulheres dirigem caminhão. Homens e mulheres dançam dança do ventre. E dança do ventre não é mais uma coisa histérica.

 

P.S. (acrescentado em 11 de julho deste ano): a garota conversou comigo a respeito, reforçando uma última vez que a questão dela era em torno da nomenclatura (embora não tenha exatamente gostado do modo como a gente conversou – ou melhor, como me dirigi a ela). Reafirmou que a questão da dança do ventre não é que homens sejam proibidos de dançar. Ou pior, que ela simplesmente ache um absurdo que homens pratiquem essa modalidade e os recrimine por isso – quando escrevi acima sobre homens serem tachados de gays, isso se deve ao preconceito largamente difundido sobre a dança entre aqueles que não a conhecem ou praticam, muito embora a opinião dela contribua para esse preconceito de modo mais ou menos direto. Se o texto deu a entender que a declaração dela foi homofóbica, trato de esclarecer que não foi o caso.

Com efeito, segundo essa linha de pensamento, a expressão só se aplica às mulheres, pois “ventre” lá seria a representação do útero. Ocorre, porém, que “raqs sharqi” significa simplesmente “dança oriental” em árabe. Ou seja, este texto também toma a nomenclatura por ponto de partida, pois ela também é importante; o modo como a encaramos define bastante o modo como a praticamos. Nomear e fazer não se separam de forma estanque, especialmente quando se trata de um processo coletivo. Como afirmou Protágoras de Abdera, o homem é a medida de todas as coisas.

 

(1) Como todos sabemos, histeria vem do grego hysteron (útero). Dizia Freud que essa doença era típica das mulheres (apesar de os sintomas também existirem entre os homens). Não estou surpreso por ver um pouco desse freudismo em certas praticantes da dança do ventre (como minha colega).

(2) Dados livremente apropriados daqui e daqui.

(3) Bom lembrar que, quando se fala de masculino ou feminino aqui, estou me referindo ostensivamente a todo um sistema taxionômico de identificação de gêneros presente no Ocidente. Estou falando da recepção da dança do ventre aqui no Brasil, mais especificamente; ainda não faço idéia exata de como esses preconceitos funcionam em outros lugares. Mas basta mencionar o fato de que o raqs sharqi já mencionado foi fortemente censurado no Egito durante parte do século XX; mesmo as mulheres não poderiam estar com o corpo bastante descoberto. Seguramente, homens que dançam dança do ventre também não são bem vistos no mundo árabe.