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A falta de limites da mediocridade lingüística

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Por Antônio Lázaro Vieira Barbosa
Banco de imagens google: palavra-chave - preconceito linguístico

Nos dias 28 e 29 de maio último foi realizada, na UFRN, a II Jornada de Estudos Bakhtinianos: Diálogos com Medvedev. A convidada, Sheila Grillo, brindou o público com sua atenção em um conjunto de sessões sobre uma obra do teórico russo Pável Nikoláievitch Medviêdev (link em inglês), O Método Formal nos Estudos Literários: Introdução Crítica a uma Poética Sociológica. Mas se ela teve o máximo de cuidado com os debates (estimulando mesmo a platéia a lançar questões), nem todos tiveram o mesmo cuidado. Com efeito, no primeiro dia, em alguns momentos a professora e pesquisadora interrompeu a fala devido à desatenção do público, duas delas à tarde (eu não havia comparecido pela manhã). A primeira delas foi pelo burburinho, o povo conversando qualquer coisa; tendo ou não a ver com a palestra, a pesquisadora interrompeu da primeira vez. Voltou a falar. De repente, fazendo uns comentários sobre outro teórico, Roman Jakobson, a galera simplesmente solta uns risos abafados. Não dois ou três, mas vários – pelo menos umas dez pessoas acharam graça de um pormenor: a pronúncia emprestada ao nome “Jakobson”.

Vamos entrar agora na parte técnica (e chata, mas não irrelevante) da coisa. Jakobson, como se sabe, era descendente de judeus, sendo seu sobrenome de origem alemã. Na pronúncia desse idioma, o jota é pronunciado como um “i” breve, sendo a palavra proparoxítona. Aqui no Brasil, a pronúncia é parecida, sendo o jota pronunciado como em português. Entretanto, ocorre que, no russo, a posição do acento tônico modifica o som de algumas vogais; no caso da palavra “Jakobson”, o acento tônico vai para a última sílaba. A letra “o”, quando tônica, possui um som fechado; quando átona, seu som passa a ser o de um “a” átono (que não é exatamente o “a” aberto, é mais como o “a” na palavra “mesa”). A pronúncia, então, ficaria “iacabsón” (obviamente, em uma grosseira transliteração de minha parte) (1).

Agora, façamos outro desvia, desta vez em direção a minha biografia. Nascido em Salvador, vim pra Natal em 1996 aos nove anos incompletos. Durante os quatro primeiros anos, sofri um notório preconceito lingüístico por causa de minha pronúncia original (que, hoje em dia, de original não tem mais nada, a não ser quando encontro algum soteropolitano e então recupero um pouco do sotaque). Alguns anos depois, vim a aprender alguns idiomas, o que não necessariamente implica (em meu caso, implicou) um abandono programático desse preconceito. Ouvir que francês é chique, que a pronúncia britânica é mais correta que a norte-americana, que alemão e russo são línguas feias porque duras: quem nunca? Mas foi em 2006, com a leitura de Preconceito Lingüístico: O Que É, Como Se Faz, de Marco Bagno, que meu sangue ferveu e reforçou ainda mais minha necessidade de combater essa discriminação.

É bom que se note que preconceito lingüístico não significa que não devamos aprender a norma culta de um idioma, mas que ela é apenas uma norma entre outras e que, no fim das contas, a comunicação deve operar em termos de contexto: via de regra, a variação lingüística – que não se confunde com a pronúncia – a ser adotada (formal, informal, coloquial etc.) depende de onde os indivíduos se encontram.

 Pois bem: voltemos ao evento. O público-alvo em questão é o de Letras. Só isso bastaria, em tese, para não haver essa discriminação espúria. Infelizmente, “a leitura de um ou dois capítulos de qualquer manual de lingüística” ainda não surtiu o efeito esperado; eu tive o dissabor de ser zoadíssimo em um encontro de estudantes de Letras na cidade de Viçosa (MG) em 2009 por alguns mineiros. E qual então não terá sido a surpresa de Sheila Grillo diante das risadinhas na platéia? Comentando sobre a palestra com uma colega, ela observou que a pesquisadora deveria, em princípio, adotar a pronúncia da comunidade lingüística para a qual estava palestrando – ou seja, a brasileira. Eu, de minha parte, defendi a pronúncia – russa – então empregada, argumentando que ambas as pronúncias são igualmente compatíveis, realizando então uma suspensão do juízo em qualquer tropo cético do qual não me lembrava (2). Os da risadinha agiram, portanto, errada e gratuitamente, pois nada autorizava sua atitude – a não ser, é claro, o preconceito lingüístico que deveriam combater diariamente, partindo de si mesmos.

Ao que parece, há muito que fazer. A ignorância – e sua companheira de jornada, a mediocridade – tem uma desculpa quando o ignorante não possui os meios pra eliminá-la. Quando os possui e aprende a usá-los adequadamente, deixa de ser ignorante; contudo, não deixa automaticamente de ser medíocre. Deveria, mas não deixa. Os cursos de Letras deveriam ser exemplares no combate ao preconceito lingüístico, e cada aluno deveria ler a Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, meditá-la profundamente e colocá-la em prática de modo rápido e sistemático. Se você discrimina mulheres, negros, indígenas, homossexuais ou quem quer que seja, já pode ir fácil a uma delegacia prestar esclarecimentos, pra dizer o mínimo. Preconceito lingüístico deveria ser crime. E espero que seja algum dia.

 

(1) Não quero encher o saco de vocês com mais chatices, mas a transliteração da pronúncia no alfabeto fonético internacional seria assim: /jəˌkəbˈson/.

(2) O tropo em questão é o primeiro tropo de Agripa, sobre a discordância: “(…) todas as coisas em questão são sensíveis ou inteligíveis, e ao tentar julgá-las, seja na vida, praticamente, seja ‘entre os filósofos’, desenvolve-se uma posição a partir da qual é impossível chegar a uma conclusão” (PATRICK, 2010, p. 68-69).