Em meio à efervescência de transformações que estão em curso neste começo do século XXI, observamos o quanto as relações familiares estão sendo atingidas por tais transformações.
Especificamente, a relação entre pais e filhos nos chama a atenção pelo seu empobrecimento afetivo, fato este que nos instiga a construção de valiosas reflexões que se distanciam de falas reducionistas e deterministas as quais comumente se referem ao tema. Já faz algumas décadas que a estrutura dos grupos familiares está sendo modificada num prenuncio das novas direções do século XXI.
Os “papéis” de pais, mães e filhos estão se “reconfigurando” conforme o que se convencionou chamar de pós-modernidade, sendo características desta contemporaneidade: embotamento afetivo, indiferença, ausência de autoridade e de limites, imediatismo, impulsividade e principalmente a ausência de referencial ético por parte dos pais\mães perante a formação dos filhos.
O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman é um dos mais importantes estudiosos da contemporaneidade caracterizada como líquida e fluida. Ele afirma não haver solidez inclusive nos relacionamentos humanos. O descartável e o imediatismo parecem ser imperantes no que o autor chama de pós-modernidade líquida, na qual as singularidades são ofuscadas e suprimidas.
Sob esta atmosfera mencionada, a sociedade contemporânea vai “formando” crianças e jovens gerados por pais\mães que parecem impotentes diante desta nova sociabilidade. Muitos (por motivos diversos) não conseguem desenvolver sensibilidade e estabelecer limites e autoridade com pulso firme diante dos próprios filhos, dos quais se responsabilizam apenas (e\ou às vezes) materialmente.
O que esta realidade impõe de pior para os pais e mães é que os mesmos não conseguem ser, em nenhum instante, referência ética e exemplo sadio “a ser seguido”. Em nossa formação, os hábitos e atitudes dos pais (seja para questões objetivas e subjetivas) sempre nos servem de recurso referencial, como muita naturalidade.
Muito comum neste contexto, é a terceirização dos cuidados: a disponibilidade de muitos pais e mães em não assumir a responsabilidade dos cuidados e formação dos próprios filhos, “jogados” avós, avôs e em alguns casos para pessoas que nenhuma ligação tem com o círculo familiar.
Os pais contemporâneos (muitos, imaturos e emocionalmente instáveis) parecem perdidos e atordoados diante dos graves transtornos emocionais vivenciados cotidianamente por seus filhos: agressividade,uso de drogas, banalização da sexualidade, deliquência, depressão, embotamento afetivo, baixa autoestima, inutilidade, medo de falar em público.
Ainda assim, crianças e adolescentes nestas condições são estimulados, a todo instante, por uma atmosfera de consumismo exacerbado, hedonismo e permissividade, tão imperativos na sociedade contemporânea.
Os filhos gerados por pais e mães deste contexto específico dificilmente têm sua formação sócioafetiva como prioridade ou projeto de vida de seus pais. Tais filhos crescem com imensas fragilidades internas e vulnerabilidades comprometedoras no que tange à construção da autoestima, do controle das emoções, da vivência saudável da sexualidade e da percepção interpessoal.
As escolas parecem ainda mais despreparadas e atordoadas diante desta realidade. As responsabilidades que seriam atribuídas aos pais e mães são “jogadas” para a escola. Para não perder seus “clientes”, as escolas particulares (as públicas, num outro contexto) agem em conivência com os atos de desordem, desrespeito e permissividade de alunos que se caracterizam como órfãos de pais vivos. Será exatamente a escola o único espaço para muitas destas crianças e adolescentes “existirem” ou para extravasar suas inquietações subjetivas e emoção adoecida. Parte significativa dos professores, diretores, etc. ainda não sabe lidar com esta realidade comportamental alarmante, estando preocupados exclusivamente com o conteúdo a ser aplicado para suas turmas de 40, 50 ou até 60 alunos!!! Imaginem a administração interpessoal e psicológica num contexto como este!!!
As crianças e adolescentes parecem os mais vulneráveis diante da contemporânea modernidade líquida. Confirma esta teoria a fala de um jovem de classe média alta (filho de pais “sofisticados” e permissivos) sobre sua rotina de desordem e deliquência: “Preciso de emoção e adrenalina!”. Com este fato, a sociedade pode fazer reflexões valiosas e estabelecer condições para mudanças e novos direcionamentos no lidar com este período transitório, diante deste contexto de órfãos de pais vivos e sociedade hedonista e nada acolhedora.
Tudo se complica com a constatação da comprometedora “invisibilidade” dos transtornos emocionais dos órfãos de pais vivos. Os pais e mães deveriam ser a principal janela para o mundo (como afirma o mestre Winnicott) de seus filhos, sendo assim afetuosos, acolhedores e criadores de estímulos e desafios sadios para o crescimento psíquico\emocional e formação da identidade de suas crias.
Para finalizar, rogo, que reflitamos juntos, lutemos pelas possibilidades de nossas crianças e jovens não se tornarem seres massificados, impotentes afetivos e aleijados sociais como desejam as grandes corporações do capital, que precisam fazer manutenção freqüente de seus rebanhos.
Vale ainda lembrar o mestre Paulo Freire: “A escola escolariza e quem educa é a família.”