Por Idelber Avelar
(Revista Fórum)
Num momento em que o Brasil atravessa uma assustadora onda teocrata, com níveis inéditos de violência homofóbica, uma enxurrada de projetos de lei inconstitucionais, em clara violação do Artigo 19 da Carta Magna, e sucessivas concessões do governo ao neopentecostalismo mais reacionário, vale a pena revisitar a ascensão recente da direita religiosa nos Estados Unidos. Trata-se de uma história bem diferente da brasileira, sem dúvida, mas talvez ela contenha alguma lição.
Das sete eleições presidenciais realizadas nos EUA entre 1980 e 2004, os Republicanos venceram cinco. A direita religiosa foi chave em cada uma dessas cinco vitórias. Mais importante ainda, a atuação do neoevangelismo e a recusa do Partido Democrata em combatê-lo de frente foram decisivas no movimento do centro político dos EUA na direção da direita. Posições acerca de temas econômicos e culturais que, até os anos 70, teriam sido consideradas de um conservadorismo extremista passaram a transitar pelo discurso político como se fossem centristas e razoáveis. A emergência de um discurso que, em termos latino-americanos ou europeus, chamaríamos de esquerda, era uma possibilidade nos EUA até aquele momento (à raiz da grande mobilização dos anos 60), mas ela foi soterrada com a eleição de Ronald Reagan em 1980 e só voltaria a dar sinais de vida trinta anos depois, com o Ocupar Wall Street. De certa forma, a hegemonia Republicana não foi interrompida por Clinton ou Obama, na medida em que seus governos foram adaptações Democratas do programa Republicano (lembre-se, por exemplo, que foi Clinton quem desmantelou o sistema de bem-estar social e foi Obama quem legalizou o assassinato extra-judicial de cidadãos acusados de “terrorismo”). Muitos fatores contribuíram para essa longa hegemonia conservadora, mas a atuação da direita neopentecostal foi decisiva.
Somente a partir da eleição de Reagan se unifica o tripé reacionário que constituiria a nova face do Partido Republicano. Esses três segmentos do conservadorismo eram, até então, relativamente independentes entre si e nem todos possuíam vida partidária ativa. A partir da década de 1980, eles se unem e formam um bloco temível: falo daquilo que, nos EUA, chamamos de conservadores econômicos (defensores do “livre mercado” e do Estado mínimo, que passam por uma trajetória de aproximação crescente a um fundamentalismo à la Ayn Rand), os falcões da política externa (representantes da indústria bélica e proponentes de um destino manifesto dos EUA de controle sobre o resto do planeta) e os conservadores sociais, que se mobilizam em torno de bandeiras como a proibição do aborto e do casamento gay, o ensino de criacionismo nas escolas e a promoção de abstinência sexual. A direita neopentecostal é o grande motor deste último grupo, até o ponto em que o rótulo “conservadores sociais” se tornou, nos EUA, uma espécie de outro nome para os teocratas.
O apoio incondicional a Israel tem sido um dos eixos da aliança entre os três setores. Pode parecer paradoxal à primeira vista, mas o sionismo mais extremista nos EUA não tem sua base na comunidade judaica, e sim no cristianismo neopentecostal. Os que mais se mobilizam na promoção e financiamento da colonização ilegal na Palestina são os chamados cristãos renascidos, que creem que aqueles que não se reconciliarem com Cristo na sua segunda vinda à Terra estão condenados ao inferno. Note-se que se trata de um ensinamentofundamentalmente antissemita. Mas a acusação de antissemitismo, claro, nunca é feita a esses grupos, já que seu apoio a Israel é incondicional. A “resolução” desse bizarro paradoxo se dá através da doutrina do chamado “dispensacionalismo”, que preconiza que o controle completo de toda a Palestina pelo estado de Israel é um prerrequisito para a segunda vinda do Messias.
Um dos equívocos mais comuns na compreensão dos teocratas ocidentais de hoje em dia é acreditar que eles são um mero resquício, uma sobrevivência medieval ou pré-moderna, fadada a desaparecer quando as sociedades se secularizarem por completo. Nada é mais falso. Trata-se de uma operação especificamente moderna, com raízes no colonialismo inglês do século XIX e muito ancorada nas novas tecnologias. Pat Robertson, por exemplo, um dos principais líderes da direita religiosa dos EUA, construiu seu império como evangelista televisivo, começando com o estabelecimento do Christian Broadcasting Network (CBN), em 1960, uma intensa campanha para a compra de receptores de TV a cabo entre neopentecostais nos anos 60, a fundação do Canal da Família nos anos 70 e a explosão de programas de TV evangélicos nos anos 80. Nessa mesma década, Robertson se consolidaria como arrecadador para os contras da Nicarágua e parceiro de Ronald Reagan na confecção da aliança que selou o pacto entre falcões da política externa, conservadores sociais e conservadores econômicos. Seria em 1983, justamente na convenção da Associação Nacional de Evangélicos, que Ronald Reagan faria o pronunciamento que ficou conhecido como “o discurso do império do mal”, em que a União Soviética era definida nesses termos, já puramente morais e não políticos.
Desde a campanha presidencial de Richard Nixon em 1968, fortemente ancorada nos medos dos brancos sulistas ante os avanços da legislação dos direitos civis (e decisiva na perda da longa hegemonia que o Partido Democrata, o partido da escravidão, sempre possuíra no sul), a direita cristã acumulou uma série de vitórias organizativas. Entre os grupos de direita religiosa formados nos anos 70 e 80 se contam: o Fórum Águia (1972), a Causa Cristã Americana (1974), o Foco na Família (1977), a Voz Cristã (1978), especificamente treinada para arregimentar evangélicos em eleições, a Maioria Moral (1979), do ultra-reacionário Jerry Falwell, a Washington para Jesus (1980), instrumento de congregação dos cristãos de direita na campanha de Ronald Reagan, o Conselho de Pesquisa da Família (1983) e, finalmente, a Coalizão Cristã (1987), de Pat Robertson, talvez a mais poderosa voz da direita evangélica nos EUA.
Se tivermos que definir qual o recurso retórico mais utilizado por esse segmento ao longo dos anos, diríamos que foi a metonímia, a toma (ou, aqui no caso, a confusão deliberada) da parte pelo todo. A expressão “Maioria Moral”, por exemplo, não poderia ser mais enganosa. As visões representadas por esse grupo estão quilômetros à direita do que poderia ser considerado o centro e a maioria do espectro político dos EUA. A maioria dos cidadãos dos EUA defende, por exemplo, o direito ao aborto. 67% concordam que a Constituição “exige uma clara separação entre Igreja e Estado”. A Coalizão Cristã não representa, portanto, nem mesmo as visões dominantes entre os cristãos dos Estados Unidos. Mas quando se fala em “cristãos” na política dos EUA, pensa-se neles. A atividade dos grupos da direita evangélica, combinada com a superexposição midiática e a recusa do Partido Democrata a enfrentá-los politicamente, acaba colocando-os na posição permanente de fazer chantagens e ameaças, e vai criando essa imagem distorcida do corpo político. O resultado é que o centro do espectro nunca está à direita o suficiente, pois os grupos teocratas, incentivados pela falta de uma resposta contundente dos liberais seculares, vão acumulando conquistas e abocanhando mais território. Nesse aspecto, o processo guarda uma semelhança assustadora com o que se vive hoje no Brasil.
O excelente site Theocracy Watch mapeia a lista de matérias sobre as quais os teocratas intervêm com regularidade nos EUA . É uma iniciativa que, aliás, deveria ser replicada no Brasil, combinando-se o ótimo trabalho que já fazem os blogs Comer de Matula, Fiscais de Fiofó e Eleições Hoje. No caso do ensino fundamental e médio, a estratégia da direita cristã tem sido promover candidatos aos conselhos das escolas ao mesmo tempo em que retira seus filhos das escolas públicas. Robert Thoburn, um dos reconstrucionistas mais influentes em política educacional, afirmou claramente: “O seu objetivo, uma vez eleito para o conselho, deve ser afundar o navio”. Dois dos projetos documentados em vários textos da direita cristã (e abraçados por um pré-candidato Republicano à Presidência este ano, Rick Perry) são a abolição do Ministério da Educação e a derrubada da decisão de 1962 da Suprema Corte, que declarou inconstitucional que o Estado patrocine orações nas escolas públicas como parte do currículo. Na batalha para conferir legitimidade ao criacionismo nas escolas, como se ele fosse ciência legítima, o Instituto Discovery tem sido até mais influente que os grupos fanáticos como a Coalizão Cristã. Ele aposta na estratégia de “lecionar a controvérsia” – como se houvesse uma controvérsia real entre cientistas acerca da evolução ou o criacionismo. Esse marco, que confere ao fanatismo religioso uma cara moderada e razoável, se encarna na chamada teoria do design inteligente, que é simplesmente criacionismo com pretensões e retórica pseudo-científica, que faz uso de um procedimento básico de qualquer ciência – a dúvida – para desqualificar pesquisa já comprovada e sugerir que o fenômeno estudado não é explicável sem a hipótese de uma “inteligência” (outro nome para a divindade) por trás dele.
Nenhuma análise da direita religiosa dos EUA está completa sem menção ao fato de que se trata, em vários sentidos, de uma guerra contra as mulheres. De certa forma, a própria emergência da direita cristã é, em sua totalidade, uma tentativa de reverter a decisão da Suprema Corte conhecida como Roe v. Wade, de 1973, que cancelou várias restrições estaduais e federais ao aborto. De lá pra cá, e especialmente durante o governo Bush, uma série de limitações voltaram a ser impostas ao aborto, que continua (não se sabe até quando) legal nos EUA. Em novembro de 2003, rodeado por legisladores homens – não havia uma única mulher –, George W. Bush assinou a proibição do “aborto por nascimento parcial”, que é uma técnica para interromper a gravidez avançada, de 20 a 26 semanas. Em 2004, o “Ato sobre as vítimas não-nascidas de violência” conferia o estatuto de pessoa humana ao feto – exatamente o que se tenta agora no Brasil com o chamado estatuto do nascituro. A medida, na prática, conferia fundamento jurídico para uma futura revogação de Roe v. Wade. O grupo de defesa dos direitos das mulheres, NARAL, contabilizou, desde 1995, 335 medidas anti-escolha, promulgadas num contexto em que é cada vez mais difícil para um médico realizar abortos e cada vez mais arriscado para uma mulher visitar as clínicas, dada a intensa pressão, com frequência acompanhada de agressões, com que os grupos anti-escolha têm se manifestado.
Mas a grande vitória dos teocratas dos EUA não foi assinada por nenhum dos George Bush nem por Ronald Reagan. Isso é o mais incrível. A maior conquista teocrata nos EUA dos últimos 30 anos foi assinada por Bill Clinton, e é conhecida como “Ato de Defesa do Casamento”, a inacreditável lei de 21 de setembro de 1996 que define o casamento como a união de um homem e uma mulher. Concebida, evidentemente, como um ataque direto a gays e lésbicas, o ato estipula que nenhum estado dos EUA será obrigado a reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo realizado em outro estado. A seção 3, depois declarada inconstitucional por duas cortes de Massachusetts (mas ainda sob recurso), determinava o não-reconhecimento federal de qualquer casamento entre pessoas do mesmo sexo para efeitos de herança, seguridade social, planos de saúde ou declarações de imposto de renda. O voto na Câmara dos Deputados foi um massacre: 342 a 67. No Senado, outra goleada: 85 a 14. Bill Clinton assinou essa monstruosidade como parte de uma estratégia de “conciliação” com os teocratas.
Pesquisa atrás de pesquisa demonstrava que a população dos EUA não se importava com isso e, quando perguntada, declarava-se majoritariamente contra essa explícita restrição aos direitos de gays e lésbicas. Qualquer análise sociológica e estatística minimamente competente mostrava que o ato era uma estratégia de Republicanos desesperados com a popularidade de Clinton e dispostos a mobilizar uma franja fanática do eleitorado. A estratégia Democrata de recusar o debate aberto, de não encarar a polêmica, só rendeu, no final das contas, mais dividendos para a teocracia cristã, sempre pronta a empurrar os limites do possível para a direita. A experiência norte-americana dos últimos 30 anos mostra claramente: a maioria da população não é composta de homofóbicos e misóginos convictos, mas a homofobia e a misoginia prosperam quando a dinâmica das seguidas concessões impede o debate aberto. Que o governo federal entenda isso, antes que o PT perca definitivamente a autoridade moral para falar em direitos humanos.
Este artigo é parte integrante da Edição 109 da Revista Fórum.