A entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo” concedida pelo internacionalmente prestigiado neurocientista brasileiro
Miguel Nicolelis é um flagrante exemplo das principais características da retórica do “delírio digital” que justifica a agenda tecnognóstica atual: o mix de messianismo, exterminismo e transcendentalismo para racionalizar os esforços das neurociências e ciências cognitivas em virtualizar a consciência.
Definitivamente, a pesquisa científica brasileira se alinha à agenda tecnognóstica desse início de século. Miguel Nicolelis, um dos pesquisadores brasileiros de maior prestígio mundial, foi nomeado no ano passado membro da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, na qual já foi membro Galileu Galilei e tendo como um dos seus atuais membros o físico inglês Stephen Hawking.
Nicolelis é diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (Rio Grande do Norte). Pioneiro nos estudos sobre a interface cérebro-máquina, suas descobertas apareceram na lista das dez tecnologias que devem mudar o mundo, divulgada em 2001 pelo MIT (Massachusets Institute of Technologie) e em 2009 foi o primeiro brasileiro a merecer uma capa da revista Science.
A entrevista concedida por Nicolelis a Alexandre Gonçalves do jornal “O Estado de São Paulo” (para lê-la clique aqui), pode ser considerada extremamente didática. Primeiro, porque, em poucas palavras, consegue resumir a utopia tecnognóstica que orienta a agenda científica das últimas décadas. E, segundo, por ser um ótimo exemplo da retórica dessa utopia que denomino como “delírio digital”: um misto de messianismo, exterminismo e transcendentalismo.
Delírio Digital
Lendo a entrevista, não saia da minha cabeça a lembrança daquele slogan que marcou os primeiros textos messiânicos dos anos 90 sobre as transformações que a tecnologia digital e a Internet trariam para o mundo: “Adapt or You´re Toast”, adapte-se ou você está frito!
O discurso de Nicolelis é dominado por expressões como “novidade explosiva”, “corpo deixar de ser o fator limitante”, “eficácia”, “evolução”, “o que definimos como ser mudará drasticamente”, “seleção natural rápida”, “criamos um sexto sentido”, “a evolução humana vai se acelerar”.
O tom emergencial da retórica de Nicolelis sobre a inevitabilidade evolutiva humana determinada pelos avanços científicos tem um tom evidentemente exterminista: tudo o que é passado é um fator limitante (corpo, linguagem etc.). Deve ser superado num processo de seleção natural acelerado, dessa vez não mais comandado por genes ou processos biológicos, mas, agora, pela vontade do cérebro.
O elemento messiânico da sua retórica revela o elemento místico por trás da racionalidade científica: as ferramentas científicas deixam de ser meras extensões ou potencializadoras das ações do corpo humano.
Mais do que isso, as ferramentas (exoesqueletos, nanotecnologias, neuroengenharia) transformarão a própria noção de “ser”. Uauuu! O que séculos de filosofia buscaram, agora, de uma só vez, será tudo resolvido e revelado: o problema é a linguagem, estúpido! Como Nicolelis afirma, corpo e linguagem serão eliminados para uma conexão direta entre o cérebro e as máquinas.
Para além dos óbvios problemas filosóficos dessa afirmação (mais abaixo trataremos disso), o messianismo é evidente: descobertas tecnocientíficas levadas a cabo por uma elite do conhecimento anunciam transformações radicais no próprio ser humano. Os dois lados da equação (elite e ser humano) são tomados num sentido abstrato, sem determinação histórica ou política (“ser humano” quem, cara pálida?). Se pesquisadores como o francês Paul Virilio e o canadense Arthur Kroker já demostraram que toda agenda científica ou tecnológica atende, em primeiro lugar, a interesses táticos e bélicos (as aplicações militares do “exoesqueleto” é um exemplo explícito) para, mais tarde, seus subprodutos serem comercializados para a população civil, temos motivos suficientes para desconfiarmos dessa retórica messiânica.
Do exterminismo e messianismo a retórica do “delírio digital” converge para o transcendentalismo. É a revelação do seu conteúdo místico ou tecnognóstico: a necessidade de abandonarmos os nossos corpos. É a concepção do “Pós-humano”, um novo ser que não necessitaria mais do corpo ou da linguagem. A tecnologia criaria um atalho para o espírito transcender como pura “vontade”.
Como Nicolelis afirma:
“criamos um sexto sentido. Vai ser uma novidade explosiva, mas não posso dar mais detalhes, pois o artigo ainda não foi publicado. A internet como conhecemos vai desaparecer. Teremos uma verdadeira rede cerebral. A comunicação não será mediada pela linguagem, que deixará de ser o principal canal de comunicação. Para entender isso, basta pensar que toda linguagem é um comportamento motor – como mexer o braço. Esse comportamento motor também poderá ser decodificado e transmitido. Grandes empresas – como Google, Intel, Microsoft – já tem suas divisões de interface cérebro-máquina.”
Dentro da concepção exterminista, corpo e linguagem são problemáticos. Finitude, existência e limitação definem o corpo; e diferenças de idiomas, incompreensão, entrelinhas e conotações são atributos da linguagem. Tudo isso atrapalham as potencialidades da vontade pura. São “ruídos” que atrapalham a livre manifestação. A vontade é inequívoca, reta. Transcende a torre de babel da linguagem e a falibilidade da carne.
A divulgação midiática desses resultados confere uma imagem utilitária e altruísta à neuroengenharia e ciências cognitivas. De certa forma, laicizam (encobre os propósitos místicos ou transcendentalistas) e popularizam uma tecnociência conduzida por uma nova elite (a “classe virtual”, como chama Arthur Krooker).
Mas quem controlará o Hardware?
Depois que as tecnologias digitais decretaram a morte das mídias tradicionais, agora a retórica exterminista decreta o fim da última mídia, o próprio corpo. Esse desejo por virtualização é o que define a ideologia da nova elite, segundo Kroker:
“Isso não tem a ver com ser pró ou anti tecnologia, mas em considerar as consequências da realidade virtual quando tão profundamente se fala na linguagem do exterminismo. Na era da classe virtual, tecnologia digital funciona para desmerecer a experiência corporal, para nos fazer sentir humilhados e inferiores diante da renderização do corpo em diferentes formas eletrônicas, de computadores a televisão no brilho e vampirismo do mundo da propaganda. A atitude em considerar o corpo como um projeto que não deu certo nos conduz a uma cultura dominada por um niilismo suicida” (Kroker, Arthur & Marilouise, Hacking the Future. New York, St. Matin’s Press, 1996, p. 80.)
Se misticamente falando esse discurso é tecnognóstico, politicamente representa um projeto político maior: a endocolonização. Se historicamente a evolução das mídias e da publicidade se basearam na sistematicamente desvalorização do julgamento individual para mais facilmente serem aceitos os conteúdos midiáticos e publicitários, agora temos o estágio final desse movimento: a endocolonização através da desvalorização da experiência corporal individual de tal forma que a mente esteja livre para se integrar a um banco de dados mundial e o monitoramento de fluxos de informações.
Não mais interfaces ou periféricos. O cérebro diretamente integrado e sem resistências.
O Neuromarketing e a Memética de Richard Dawkins já havia iniciado esse movimento de endocolonização por meio do mapeamento dos estímulos neuronais para a eficaz fixação das mensagens de propaganda. Agora, com a neuroengenharia e a busca da interface final (cérebro/máquina, biológico/eletrônico) teremos a possibilidade da quebra da resistência final: o espírito, agora traduzido como “vontade”.
Mas quem controlará o Hardware? O discurso despolitizado de Nicolelis parece ignorar essa questão fundamental. Embora fale em “democratização da ciência”, tranquilamente fala de que Google, Intel e Microsoft possuem seus departamentos de neuroengenharia. Partindo dos fatos históricos envolvendo complexo militar e a tecnociência apontados por Kroker e Virilio, quem controlará o hardware que pavimentará essas infovias onde circularão indivíduos com o seu ego imerso nas redes digitais?
As problematizações sócio-políticas sobre Engenharia social, monitoramento e controle são temas que passam longe dessa
retórica messiânica e tecnoutópica.
Onde está a consciência?
Por exemplo, a grande contribuição da fenomenologia do francês Merleau-Ponty no século XX foi estabelecer as bases
cinestésicas da consciência e da percepção. Partindo de um princípio holístico, corpo e consciência estão relacionados e mutuamente engajados. A própria percepção de si mesmo e do ambiente depende do posicionamento corporal e da sua ação sobre os objetos. Consciência e experiência estão em um mesmo fenômeno e não são excludentes como encara o cogito cartesiano.
De forma regressiva as neurociências retomam a essa concepção cartesiana de consciência como algo que sobrevoa a existência e que, portanto, deve ser libertada por meio de uma intervenção da neuroengenharia.
Portanto, a retórica do celebrado neurocientista brasileiro Nicodelis definitivamente se alinha à agenda tecnognóstica da comunidade científica internacional. Uma agenda marcada pela convergência das neurociências e ciências cognitivas criando uma verdadeira “religião da tecnologia” (a tecnognose) cuja utopia transcendentalista encobre projetos políticos e sociais bem materialistas: engenharia social, controle e monitoramento a partir de verdadeiras cartografias futuras da mente.
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