Não é novidade, em nossa história, que as mudanças sociais de tendência niveladora e democratizante sejam, quase sempre, recebidas com um sentimento de preocupação pelos setores conservadores de nossa sociedade. Principalmente quando elas são acompanhadas com o bilhete de ingresso à espaços e funções, socialmente valorizados, outrora negados ou restritos a determinados setores da população. Nos últimos tempos, o desconforto é ainda maior porque essas mudanças estão sendo conduzidas, com protagonismo, por instituições de forte legitimidade, como o Estado, a Universidade, o Supremo Tribunal Federal.
A reação imediata é sempre o alarde e a ameaça que tais mudanças acarretariam nos valores considerados fundantes das “tradições nacionais” ou na Ordem jurídica do país, ensejando precedentes e consequências provavelmente nefastas e perigosas num futuro próximo. Assim, de Demétrio Magnoli à Reinaldo Azevedo, especula, em dose considerável, o pensamento conservador nacional.
Dentre os contrargumentos mobilizados em oposição às políticas de cotas em geral – sociais e raciais – um, em particular, chama atenção pelo apelo à abstração como arma crítica contra os favoráveis a implantação das cotas. De base legalista, normativa, ele invoca o princípio constitucional da igualdade entre os homens, independente de suas diferenças de classe, de gênero, de etnia, etc.. Além de ferir o mérito, as cotas feririam o princípio de isonomia ao proporcionar pontos de partida desiguais na disputa por uma vaga, privilegiando uns em detrimento dos outros.
Trata-se do apelo ao um universalismo demasiadamente abstrato, descarnado da vida real e naturalizado dos valores da Ordem jurídica liberal. Sob esse ângulo, as desigualdades existentes seriam a consequência natural e lógica da competição entre indivíduos iguais mas diferentes em termos de talento e esforço pessoal.
O erro dessa perspectiva consiste em desconsiderar o fato de que, nas sociedades modernas e relativamente democráticas, os “pontos de partida desiguais” nas oportunidades e nas condições de competição social são anteriores aos indivíduos e à própria competição social. Nas sociedades modernas, a igualdade é um pressuposto abstrato ao passo que a desigualdade é um pressuposto social, fático, fruto dos desequilíbrios decorrentes da organização econômica e social desigual de recursos e poder, dos marcadores sociais estratificadores (classe, gênero, raça), do peso da herança histórica, dos estigmas e preconceitos, entre outros fatores produtores e reprodutores da desigualdade.
Sustentar o universalismo e a validade do princípio face a crueza das desigualdades e dos desequilíbrios é mais do que simplesmente denegar a existência destes últimos; é não perceber que tal convicção mantida em seu formalismo sobre todas as coisas acarreta em vantagens e privilégios que só acentuam o grau e a persistência da desigualdade.
Os que apelam, com indignação e convicção, aos princípios formais e abstratos, esquecem-se que, ao fim e ao cabo, a “desigualdade” instituída pelas cotas não visa outra coisa senão alcançar uma igualdade mais concreta, que traduza a abstração da fórmula em realidade social.
Para que o “todos iguais perante a lei” exista de fato é preciso reconhecer que esse “todos” é formado por partes diferenciadas, cujas condições para desfrutar a igualdade perante a lei e diante dos outros não são iguais por razões exteriores à norma, isto é, derivadas da história, cultura, preconceitos, limitações físicas, etc. Daí que, para atingir um grau razoável de efetividade concreta, poderia se dizer mesmo de cidadania, é necessário alçar os que estão aquém desse patamar de igualdade de condições. Portanto, isto só é possível mediante compensações, proteções e apoios legais que os favoreçam em relação aos demais.
O triunfo obstinado da igualdade, para usar a expressão clássica de Tocqueville, necessita, para ser efetiva e real, da promoção da “desigualdade”, ou seja, dos tratamentos diferenciados dispensado a grupos socialmente mais vulneráveis, desfavorecidos, estigmatizados e em desvantagem – mulheres, negros, homossexuais, índios, portadores de necessidades especiais, etc. A política de cotas é uma ação institucional que visa tornar a igualdade de direito ou formal em igualdade de fato, concreta. Logo, antes de ferir o princípio da igualdade, a política de cotas aperfeiçoa-o em sua correspondência concreta com a vida social.
A compreensão acerca do princípio de igualdade deve, com efeito, conjugar, de forma interdependente, a letra fria da lei com à história efetiva e à sociedade real, pois são nestas últimas, e não propriamente nas normas em si, que os cidadãos concretos vivem. É, a meu ver, essa postura interpretativa mais relacional, telúrica e aberta, combinada com um esforço político-normativo para fazer valer os princípios constitucionais na prática, e na apenas na forma, que os ministros do STF, nos últimos tempos, tem adotado.
Para alguns, tal postura seria “ativismo jurídico” ou submissão das normas à “voz rouca das ruas”. Particularmente, vejo como avanço e complexificação da avaliação e da interpretação jurídicas na tentativa de estreitar as lacunas entre o mundo das normas e a sociedade, entre a representação normativa dos direitos fundamentais, positivada na Constituição, e a efetividade concreta e tensa dos direitos fundamentais na vida e nas relações sociais. Como diria o filósofo e sociólogo Jurgen Habermas, o “direito não é um sistema narcisisticamente fechado em si mesmo”.
Priorizar a validade de fórmulas abstratas ou princípios universais sem importar-se com as desigualdades concretas, é o mesmo que por, com as próprias mãos, uma venda sobre os olhos. Uma venda que opta, em nome da pureza e da validade ideal da formalização das relações humanas e da realidade, não enxergar como de fato as relações humanas, as oportunidades sociais e as formas de convívio estão estruturadas de maneira profundamente desigual, nem o seu efeito devastador na realização das aspirações e projetos das pessoas.