Search
Close this search box.

Eram os Deuses Astronautas?

Compartilhar conteúdo:

Eram os Deuses Astronautas?Da Teia Neuronial – Provavelmente não. Mas é fácil pensar que sim. O olhar contemporâneo antropocêntrico, eurocêntrico, enfim, etnocêntrico, interpreta as manifestações de outras culturas e épocas segundo seus próprios parâmetros e experiências. Por isso, quando Erich von Däniken pergunta “eram os deuses astronautas?”, é preciso abordar a questão de forma crítica e despojada das pré-noções de quem se atreve a investigar esse tema.

A primeira vez que me deparei com Eram os Deuses Astronautas? foi com uma velha edição de capa verde do meu pai, e este me causou a impressão de que era uma obra impressionante, que revelava uma realidade perturbadora sobre nossos passado e origem. Não cheguei a ler o livro na época. Mas há poucos anos adquiri uma edição nova e, mais interessado do que nunca sobre qualquer tema relacionado a extraterrestres, li o livro rapidamente, sem sentir o impacto que normalmente os leitores dizem sentir.

Erich von Däniken escreveu muitos livros sobre as supostas evidências da presença de extraterrestres na Terra, que teriam vindo no passado e deixado sua impressão nos seres humanos. Seu livro mais célebre, aqui comentado, é repleto de relatos sobre imagens, mitos e construções da Antiguidade que, se interpretados de uma certa maneira, mostram que extraterrestres tecnologicamente muito avançados tiveram contato com seres humanos e os ajudaram a se desenvolver em várias áreas do conhecimento, especialmente na Arquitetura.

Essa ideia de que a complexidade da arquitetura antiga só poderia ser explicada por uma força maior do que a humana é hoje em dia muito difundida, em parte, graças à obra de Däniken. Mesmo com diversas explicações histórico-arqueológicas bem fundamentadas sobre a tecnologia dos egípcios, dos maias, dos astecas, dos babilônicos e de tantos outros povos, plausivelmente desenvolvida pelo próprio ser humano, ainda é mais fácil olhar para uma obra faraônica do passado e acreditar que humanos “primitivos” não conseguiriam erguer obras tão colossais e complexas.

Logo no início do livro, tanto na “Introdução” de Däniken quanto na “Apresentação” de João Ribas da Costa e Flávio A. Pereira, alguns pressupostos e noções a priori já determinam o caráter enviesado do livro, que se baseia em algumas falácias como: os “humanos primitivos” eram incapazes de criar obras “inacreditáveis”; “todas [as religiões] prometem ajuda e salvação à humanidade”; os deuses da mitologias antigas eram seres extraterrestres reais; a Ciência chegará ao fim quando a “verdade” for descoberta; os indícios de radiatividade em vestígios arqueológicos não pode ser explicada senão recorrendo-se a algum tipo de tecnologia.

O autor propõe uma postura interessante e importante para qualquer tipo de investigação científica, que é se despojar das formas tradicionais de pensar e das pré-noções para admitir outras possibilidades nunca imaginadas. Porém, ele incorre no erro que quer evitar, ao basear suas teorias em vários preconceitos advindos da visão de mundo típica de um ocidental contemporâneo.

As generalizações levam o autor a uma inevitável conclusão. Na verdade, o próprio título da obra já determina a conclusão do livro (“os deuses eram astronautas”), e o trabalho de Däniken é escolher os dados que a corroborem, descartando qualquer evidência que não suporte suas hipóteses.

O texto traz alguns questionamentos interessantes e ideias relevantes para se pensar a natureza da vida extraterrestre, como esta:

[…] será essencial que os planetas devam ter condições semelhantes às da Terra para que neles exista vida?

Mas no geral o autor se vale de teorias pseudocientíficas, como aquela que explica o surgimento da vida na Terra a partir de micro-organismos vindos do espaço. Esse aspecto da obra está ligado a um tom sensacionalista que faz Däniken parecer um jornalista de tabloide, constantemente utilizando exclamações e chamando a atenção do leitor para as “surpreendentes” descobertas científicas e para os mistérios ainda por ser revelados num futuro próximo.

É bom destacar que uma de suas principais teorias, ou seja, a ideia de que os deuses das mitologias antigas são extraterrestres que visitaram a humanidade num passado distante, possui contradições que revelam a falácia de sua argumentação. Ele afirma em alguns momentos, por exemplo, que, ao receberem a visita de alienígenas tecnologicamente mais avançados, os humanos consideraram que se tratavam de deuses, ou seja, eles já tinham uma crença teísta. Mas ao mesmo tempo subestima a capacidade humana de criar mitos, ao sugerir que foram os próprios extraterrestres que serviram de inspiração para a crença nos deuses.

Mas uma das mais controversas ideias desse livro, a meu ver, é a insistente subestimação das capacidades humanas de imaginar e criar. Essa ideia começa a ser esboçada nos dois primeiros capítulos, junto a uma visão etnocêntrica que pensa os “selvagens primitivos” da América, da África e da Oceania como povos ingênuos que se impressionaram com as maravilhas trazidas pelos brancos “civilizados”. Essa forma de pensar, que tem justificado a ação imperialista ao longo da história e reflete a vaidade dos povos civilizados ao se verem como supertutores (ou mesmo deuses) de sociedades “em desenvolvimento”, é há muito discutida e criticada pela Antropologia.

Ou seja, a própria ideia imperialista de que os povos “primitivos” atuais só podem se desenvolver social, econômica e culturalmente pela intervenção de governos mais “avançados” tecnologicamente e mais “desenvolvidos” socialmente (e, diz-se hoje em dia, mais “democráticos”) se estende à fantasia de um povo alienígena ultradesenvolvido, cuja ação seria a única via para que a humanidade saísse da Idade da Pedra (selvageria, barbárie) e passasse à Idade do Bronze (civilização).

Penso que a principal falha desse argumento é que ele não considera os meios pelos quais esses próprios superextraterrestres chegaram a condição tão avançada. O que se depreende de toda a dissertação é que provavelmente esses seres do espaço também foram agraciados por “deuses” ainda mais antigos, e Däniken até sugere que no futuro a humanidade assumirá o papel de “deuses astronautas” em outros planetas “primitivos”. O ovo ou a galinha?

Esses problemas argumentativos implicam também falhas epistemológicas. O autor partiu de umas poucas observações que fez em viagens para deduzir toda uma complexa teoria baseada apenas na observação enviesada. Mesmo assim, ele faz a mesma acusação aos arqueólogos, como se as teorias destes fossem questionáveis pelo fato de se basearem em suposições e o preenchimento de lacunas. Entretanto, é disso que a Ciência é feita, de aproximações e verdades relativas, não de crenças e imaginação sem raízes na empiria.

E justamente o que Däniken parece fazer é especular, imaginar e assumir como teorias bem-fundadas as hipóteses que levanta. Ele confunde, assim, abertismo (que, junto ao ceticismo, forma a postura ideal da investigação científica) com fantasia. Não se deve negar fanaticamente, por outro lado, que a falta de evidências ou as explicações científicas mais prováveis sejam prova de que não houve visitantes do espaço. Aliás, pessoalmente, tendo a pensar que é possível, e seria bom que tivesse acontecido um contato interplanetário, mas ainda não há uma resposta irrefutável.

A especulação de Däniken é, assim, baseada na simples impressão que ele tem daquilo que observa, como quando ele descreve sua experiência de ver as imagens da planície de Nazca:

Vista do ar, a faixa de 60 quilômetros de extensão da planície de Nazca deu, pelo menos a mim, a claríssima impressão de um vasto campo de pouso [grifo no original, mas é justamente esse grifo que interessa neste trecho].

A pergunta “eram os deuses astronautas?” só pôde ser levantada depois do início da Era Espacial, das pesquisas astronômicas sobre sistemas e planetas distantes, da Xenobiologia e da Ficção Científica. Essa pergunta só tem sentido para os humanos contemporâneos. Toda a interpretação de imagens e obras antigas como sinais da presença de extraterrestres e seus veículos espaciais só é possível pela visão de um ser humano que tem em sua experiência de mundo o conhecimento de tecnologias de viagem espacial (desenvolvida pelo próprio ser humano).

Uma possível contra-argumentação ao parágrafo acima seria: “foi preciso esperar até os dias de hoje para percebermos do que realmente se tratavam aquelas marcas, construções, imagens e mitos antigos”. Porém, não podemos ignorar o poder das representações em nossa interpretação dos fenômenos do mundo, e pessoas de outras épocas e lugares certamente levantariam outras hipóteses, baseadas em suas próprias experiências.

Däniken sustenta incansavelmente que a resposta positiva à pergunta no título de sua obra é óbvia, claríssima, está aí para ser vista por qualquer um que use o “bom senso”. Mas, se fizéssemos a mesma pergunta a algum europeu medieval, ela não faria o mesmo sentido que para nós (ou talvez nem fizesse sentido algum). Talvez os “capacetes” das cabeças de pedra em Tiahuanaco fossem vistos como exóticos elmos de soldados, ou os “capacetes de traje espacial” das figuras em Val Camonica fossem interpretados como auréolas de santos.

O erro do etnocentrismo é enxergar o modo de viver de uma sociedade distante, no tempo e no espaço, segundo os critérios de representação do próprio observador. A incompreensão da cultura alheia sempre foi motivo de conflitos. Interpretar a realidade subjetiva do outro de acordo com aquilo que pensamos ser objetivo (mas que é sempre regido pela subjetividade) nos faz pensar, por exemplo, que determinado povo cultua seres maléficos, que não tem leis e vive sob a égide do caos, ou que suas crenças em deuses do céu são relatos de alienígenas do espaço.

É comum, quando se tenta explicar a natureza do ser humano, se valer das coisas que são universais como forma de provar que são biologicamente inerentes ao Homo sapiens. Esse tipo de argumento também é usado quando se pretende defender a hipótese de que todos os povos humanos passaram por eventos semelhantes em algum momento de sua gênese. Däniken faz isso ao afirmar categoricamente que a presença de relatos de seres vindos do céu em praticamente todas as culturas só pode ser interpretada como uma evidência inconteste do real contato de uma ou mais espécies extraterrestres com os povos humanos primitivos.

Porém, os universais humanos não são necessariamente evidências de qualquer “natureza” humana inata nem de uma experiência pré-histórica compartilhada. Eles são indícios de que as experiências básicas dos indivíduos e sociedades humanos se repetem ao longo de suas histórias individuais e coletivas. E se nos atermos apenas aos mitos dos diversos povos, entenderemos, com a ajuda de James Frazer, Sigmund Freud, Émile Durkheim, Carl Jung, Claude Lévi-Strauss, Gilbert Durand, Joseph Campbell e tantos outros estudiosos da mitologia, que existem estruturas semelhantes e arquétipos em todas as cosmologias míticas.

No entanto, mesmo buscando elementos universais para corroborar sua teoria, Däniken em alguns momentos recorre ao argumento inverso, tomando, por exemplo, casos isolados de possíveis deformações, mutações ou exotismos fenotípicos (provindos de relatos  do passado) para generalizar a ideia de que houve uma extensiva miscigenação entre humanos e extraterrestres.

Ao longo de toda a obra fica patente a postura extremista de abraçar a primeira e mais complexa explicação fantástica quando não se tem explicações científicas para um dado fenômeno. Essa postura, aliada a uma visão comum que menospreza a capacidade do ser humano de compreender o Universo e de criar tecnologia, traz a crença teísta para o campo das especulações astrofísicas, enquadrando os seres extraterrestres no mesmo papel de poder e dominação dos deuses, onipotentes perante a frágil e incapaz humanidade.

Links

Foto em destaque