Esquecemos ou simplesmente não sabemos que não foi somente nos tempos do descobrimento do Brasil que houve massacre de índios. Em pleno anos 1940, no governo Vargas, um avanço sobre as terras indígenas na região central do país, em busca de terras consideradas “desocupadas”, levou a um novo extermínio que, graças ao empenho dos irmãos Villas-Bõas, não foi maior.
Os Villas-Bôas são representados no filme por Felipe Camargo (Orlando), Caio Blat (Leonardo) e o talentoso João Miguel (Cláudio). Eles se alistam na Expedição Roncador-Xingu na simples busca de aventura e se deparam com a enorme dificuldade de cruzar aquela região. Dificuldade esta sentida pela própria produção do filme, apensar de todas as facilidades que não haviam na época da expedição. Se por um lado o encontro da expedição liderada pelos irmãos com os índios tenha sido um encontro amigável (embora no início houvesse a ameaça de conflito), sabemos, porém, que nenhum encontro do homem “civilizado” com os povos indígenas acabou bem. O simples encontro, por mais pacífico que seja, não pode evitar a disseminação de doenças típicas do homem “civilizado”, que por si só exterminam parte da aldeia. Por outro lado, repito, tudo seria bem pior se não fosse o empenho dos irmãos Villas-Bôas que, num primeiro momento, fazem todos os esforços possíveis para medicar os nativos adoecidos pelo contato com o branco.
Dirigido por Cao Hamburger (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), o filme tem uma narrativa um pouco didática e uma montagem permeada de elipses que fazem a passagem de tempo ser um tanto acelerada. Mas as ótimas interpretações e uma fotografia que exalta a exuberância e a magia da floresta, da mesma forma que mostra a sua degradação pela mão dos fazendeiros, salvam o filme de um simples registro histórico. Desta forma, Xingu se torna um filme guiado por paixões, sejam elas dos seus protagonistas na sua paixão pela floresta e pelas tribos, quanto as paixões humanas que os mesmos trazem consigo. E, neste caso, o ator João Miguel acaba sendo o que mais se destaca do trio de protagonistas, mostrando sua apaixonante militância e carinho pelos nativos (em um dado momento, enquanto Orlando trata da “política” com um representante do governo, Cláudio leva um grupo de índios para voar de avião, de tão maravilhados que eles estão com tal máquina voadora), assim como o desgaste físico e emocional da passagem do tempo na floresta.
A direção de Hamburger consegue suscitar uma reverencia àquele mundo selvagem que, mesmo fazendo parte do mesmo país, estava muito distante de nós. Um mundo que teve o seu sagrado profanado pelo “Ordem e Progresso” da política brasileira. Em um momento do filme essa magia se mostra no corpo nu de uma índia, corpo coberto apenas pela escuridão da floresta noturna, mas despido pela luz de uma lanterna. Como um animal que se esgueira na escuridão enfeitiçada pelos sons da mata, vemos primeiro sua perna pintada, a luz da lanterna sobe pelo seu corpo até encontramos a inocência erótica do seu sorriso. Particularmente, uma das melhores cenas do filme que mostra o sexo sacramentado pela magia da floresta. Graças a uma poética que o diretor se deu ao luxo de inserir num filme que realmente necessitava um pouco mais dessas “pausas”. Por um momento eu acreditei que naquela cena os deuses e deusas do folclore brasileiro iam participar do filme que, embora quase documental, pudesse ser lhe dado uma certa licença poética ao seu roteiro.
Por falar em folclore, alguns personagens são mostrados quase como arquétipos de uma fábula cruel: é o político que participa em parte dos festejos da aldeia, enquanto distribui terras para os fazendeiros; é o fazendeiro que acha absurdo a ideia de índio ser dono de terra, apesar destes sempre terem vivido na mesma terra que agora é invadida pelo homem “civilizado”; são os representantes do exército e do governo querendo construir a fracassada Transamazônica. Para todos eles não é dado mais do que essa aparência de arquétipos ou “tipos”, ilustrando a narrativa para os verdadeiros personagens: a população indígena, os verdadeiros proprietários daquelas terras; e os irmãos Villas-Bôas, estes últimos negociando com os outros “brancos” para salvas aqueles povos (ainda assim, uma das tribos foi reduzida de 600 para 79 indivíduos).
Segundo o diretor Cao Hamburger, a ideia do filme foi um presente de Fernando Meireles (Cidade de Deus) que, por sua vez, recebeu a proposta do filho de Orlando Villas-Bôas que temia que a história do pai e dos tios se perdesse. E por isso e outras coisas que Xingu é um filme obrigatório, não somente pelo resgate histórico desses homens que deram tudo o que podiam (sua vida confortável e seus bons empregos) para que o nosso próprio governo não cometesse novamente o mesmo crime dos tempos da colonização. Mas também por ser um filme que, apesar das suas falhas, mostra competência e veracidade ao contar tal história. E se por um momento, pela compreensível falta de recursos, o filme lança mão de clichês (avião caindo na floresta, corte para plano mostrando aves voando assustadas pelo barulho), por outro superam essa falta de recursos com certa criatividade, como uma ação vista através do reflexo dos óculos do protagonista. Também pela emoção que consegue nos passar em determinadas cenas. Assim como sua direção de arte que soube representar de forma convincente os povos e a época, mesmo que as cenas não tenham sido filmadas nas trilhas da expedição original, pois hoje tudo é habitado. Assim, Xingu se mostra um heroico (dado a todas as suas dificuldades na produção), belo e necessário resgate da nossa história.
No final do filme ainda somos presenteados com imagens de arquivo dos verdadeiros Villas-Bôas.
Ficha técnica:
Xingu (Brasil , 2012 – 102 minutos)
Direção: Cao Hamburger
Roteiro: Cao Hamburger, Elena Soarez, Anna Muylaert
Elenco:João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat, Maiarim Kaiabi, Awakari Tumã Kaiabi, Adana Kambeba, Tapaié Waurá, Totomai Yawalapiti
Imagens retiradas do site oficial: www.xinguofilme.com.br