Por Eduardo Ferreira Moura
Tenho um filho. Essa é uma revelação estranha, porque dizer isso implica dizer que sou pai. Não me vejo pai. Embora também não veja meu pai como pai, o que em verdade não quer dizer nada. Mas meu pai é pai, sem dúvida, ele tem todo o jeitão de pai, por pior que seja. Eu não.
Foi um acidente. Quer dizer, para o homem sempre é. Para a mulher não. Não existe gravidez acidental para a mulher. Se a mulher tiver em mente que não quer ter filhos, não engravida nem se nadar em um oceano de porra. Já fiz o teste. É o melhor método contraceptivo que tive o prazer de conhecer. E o mais barato também. Mas não foi assim com a Tatiana.
Eu estava em São Paulo. Odeio São Paulo, porque São Paulo não é aqui. Odeio lugares que não são aqui. Estava lá a trabalho, isso no tempo em que eu me levava a sério a ponto de suportar trabalhar em São Paulo. Eu me levava tão a sério que praticamente namorava a Tatiana. Ela sentia dores estranhas e tinha um ciclo menstrual muito irregular. Então, foi a um médico que, após alguns exames, sentenciou:
– Você tem ovários policísticos. Jamais poderá engravidar.
Acreditamos no idiota. Sobrava uma graninha naquela época e a vida era boa, apesar de estarmos em São Paulo. A gente comia bem e transava sem camisinha o dia inteirinho. Ela não podia engravidar e não tínhamos tempo de ter relações sexuais com outras pessoas, já que passávamos o dia todo tendo relações sexuais um com o outro. Relações sexuais, de fato, apenas quando nos conhecemos. Depois começamos a trepar, em verdade. Mas amor mesmo, nunca fizemos.
Então a menstruação atrasou demais, mesmo para os padrões dela. Uma amiga bem que lhe disse:
– Você tá com cara de grávida.
Pensando bem, ela realmente fez cara de mãe naquela semana. Lá pelas tantas do terceiro mês, comprou um teste de farmácia, desses que muda de cor. Resultado: bingo. Ela fez o teste na minha ausência e quando eu cheguei em casa vi que ela já não era a mesma. Acho que eram os hormônios ou sei lá, mas ela estava realmente feliz com aquilo. Uma felicidade plástica, quase artificial. Como se Tatiana tivesse batido hormônios com leite e açúcar no liquidificador e tivesse bebido até a última gota. Imediatamente lembrei-me dos seus ovários. Tive vontade de voltar no médico para lhe dizer que policísticos eram os ovários da senhora sua mãe. (Realmente). Essa não é exatamente a atitude de quem quer ser pai. É, pensando bem, eu não queria.
– Que bom!
Menti. Vivi aquela mentira por quase dois meses. Um dia encontrei com o Ferreira. Espero que o Ferreira nunca leia essas besteiras, porque da missa não sabe a metade. A gente se esbarrou por acaso, no mercado vagabundo que tinha na Liberdade. Filho é caro antes mesmo de nascer e eu já havia notado isso. Não estava sendo divertido. Ferreira trabalhava com caminhões no Rio de Janeiro. Perguntou se eu estava trabalhando.
– Não.
Menti.
– Acabei de ser mandado embora e tô precisando voltar pro Rio.
Ferreira me deu um cartão com um número de telefone. Liguei para o número e duas semanas depois estava em casa. No Rio de Janeiro, claro. Em São Paulo não há casas, apenas indústrias de confeccionar maluco. Disse para Tatiana que ganharia mais aqui e que lhe mandaria dinheiro sempre. Ela estava tão grávida que aceitou. Acho até que acreditou. Mandei dinheiro por mais dois meses, até que o dinheiro começou a me fazer falta e eu parei de mandar. As pessoas têm a mania de me julgar por isso, porque elas próprias fizeram questão de sustentar, amamentar e limpar a bunda dos filhos até os trinta anos. Ainda assim seus filhos não as suportam. Grandes juízes são os juízes.
Então passou um tempo e meu telefone tocou.
– Pai?
Era a minha voz, só que do outro lado da linha. Não entendi como isso era possível, até que me lembrei da Tatiana. Será que já fazia vinte anos? Instintivamente levei a mão aos ovos.
– Quem tá falando?
– Eduardo. Seu filho.
Senti dor de estômago. Tatiana colocou no moleque o nome do ex-marido. Não fiquei com raiva nem ciúme, como penso que ela quisesse que eu ficasse. Fiquei com pena do moleque, o ex-marido da Tatiana não comia carne, era paulista e usava bermudas.
– Estou no Rio de Janeiro. Será que a gente pode se ver?
A coisa foi ficando cada vez pior. Pior assim. Mas tinha a certeza de que ele não me odiava. Ele é filho. Como tal, programado biologicamente para não conseguir me odiar jamais.
– Pode. Claro.
Com sorte ele me pagava uma cerveja. E me pagou. Entre um copo e outro me contou histórias tristes. Mas herdou, sem dúvida, meu orgulho. Não me pediu um puto sequer. Reparei também que ele herdou os olhos da mãe. Era o que de melhor havia para herdar dela depois dos peitos. O moleque deu sorte. Ela tinha bons genes no geral, dentes saudáveis inclusive. Olhos lindos.
– Meu filho tem olhos lindos.
Pensei. Quase senti orgulho. Foi o suficiente para me fazer pagar a cerveja, afinal. Ele tinha um estojo de violão nas costas, daquele tipo que parece guardar um vampiro. Bonito estojo, o moleque devia tocar bem. Explicou que era músico e que percorreria bares na Lapa atrás de emprego. Pensei em lhe apresentar algumas pessoas, mas depois me lembrei do relacionamento que tenho com essas pessoas e me toquei de que talvez eu o fosse atrapalhar. Ele quis ficar lá em casa enquanto isso.
– É a única coisa que eu te pedi em vinte e dois anos.
Moleque babaca. Economizou para poder pedir direitinho… Mas ele tinha olhos lindos e eu cedi.
– Por um tempo.
Pontuei.
– Por um tempo.
Concordou. Mudou-se aqui para casa. Carregava apenas uma mochila e precisou de roupas, mas, em vez de lhe comprar, dei minhas roupas velhas, que já não cabiam mais. Foi quase bonito vê-lo vestido de mim. Já as cuecas eu não quis dividir. Dane-se que são os meus genes e sangue do meu sangue. É um homem com cabelo no saco, cabelos que não são os meus. Comprei-lhe dez cuecas e uma caneta para tecido. Gravei uma letra E na lateral de cada cueca para não misturarmos as suas dez com as minhas dez. Fiz questão de que fosse na lateral, porque não confio em um homem que anda por aí com a letra E gravada na bunda.
Não sei se ele conseguiu emprego. Conseguia se virar com trabalhos aleatórios. Trocava o dia pela noite na maioria das vezes e não tivemos muito tempo para conversar. Passou oito meses aqui, talvez um pouco menos. Pouco a pouco, a letra E nas cuecas foi se tornando a letra F. Às vezes C. Às vezes traços não identificáveis. Um dia notei que eu tinha doze cuecas e ele apenas oito. Um dia notei que eu tinha quinze cuecas. Um dia notei que eu tinha vinte cuecas, ambos soubemos que era hora de ele partir. Não sei bem para onde foi, anotou um telefone em um papel. Comprei-lhe outras dez cuecas e não precisei escrever nada. Ambos soubemos que ele estava pronto para ter as próprias cuecas.
Esse conto integra o livro Meus Textículos.
Eduardo Ferreira Moura é carioca e tem 23 anos. É autor do romance Esposa Perfeita e do livro de contos Meus Textículos. Blog pessoal: http://lifeonmarx.blogspot.com.br/