Talvez desde a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, as mulheres brasileiras não tenham tido reconhecimento de direito tão relevante para a garantia dos direitos humanos no país. Lutar e conquistar a dispensa de autorização judicial para interromper a gestação de feto anencéfalo representa um passo crucial no respeito à autonomia, à dignidade e aos direitos reprodutivos das mulheres.
Com maioria de votos a favor da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, o Plenário da Corte aprovou nesta quinta-feira (12), a descriminalização da antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo. O Supremo Tribunal Federal (STF) protege assim as mulheres da tortura e indignidade de ter de levar a cabo a gravidez que deseja interromper, porque o feto não tem chance de vida extra-uterina.
Os dois longos dias de julgamento não se aproximam da dor das mulheres que foram obrigadas a levar a gravidez de um feto anencéfalo até o final ou percorrer uma verdadeira via crucis, por uma autorização judicial para interrompê-la. Sofrimento narrado no brilhante documentário biográfico “Uma História Severina”, disponibilizado no youtube (http://www.youtube.com/watch?v=65Ab38kWFhE).
Nesse sentido, garantir o direito à antecipação do parto é permitir que a mulher tenha a opção de “escolha pela menor dor”, como defendeu a ministra Carmem Lúcia em seu voto. Isso representa reconhecer as mulheres como sujeitos autônomos, com direito de optar pelo melhor caminho a seguir em um momento doloroso.
O longo discurso do ministro relator Marco Aurélio relembrou, por via da História, que há tempos o Estado Brasileiro é laico e deveria tomar suas decisões baseado nos princípios de direito. O Estado deve defender a liberdade religiosa, o direito de credo de cada pessoa e, por isso mesmo, pautar o debate e as decisões do poder público no direito, e não em princípios ou dogmas de qualquer religião.
Por fim, descriminalizar a mulher que opta por interromper uma gestação de feto anencéfalo representa um avanço democrático para garantia dos direitos reprodutivos.
Trata-se do “direito da mulher de não ser um útero à disposição da sociedade”, como defendeu Luís Roberto Barroso, advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde – CNTS, em sua sustentação oral de defesa da ADPF no Supremo.
Essa é uma conquista democrática e laica histórica que a cidadania brasileira deve sublinhar e reconhecer publicamente à Severina e a todas as mulheres que, apesar da dor, decidiram enfrentar a longa batalha judicial; à CNTS e à Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero que moveram e articularam toda essa ADPF no STF; aos movimentos feministas e de mulheres e a tod@s @s defensor@s dos direitos humanos que sustentaram sem tréguas a autonomia das mulheres para decidir sobre manter ou interromper a gravidez e pelas mudanças profundas que produziram para a efetivação da Justiça no nosso país.
Vanda Regina Albuquerque – Coletivo Leila Diniz (Natal/RN)
Kauara Rodrigues – Centro Feminista de Estudos e Assessoria/CFEMEA (Brasília/DF)