Se você defende uns, por que come outros?
No debate sobre os direitos dos animais, uma coisa é preciso deixar clara: Nem todos animais são “animais”. Apenas tratamos como “animais” aqueles que são domésticos ou bonitinhos, os demais são apenas “o resto”. Uma prova disto é que continuamos a comer ‘baby beef’ e adoramos um caranguejo (morto na água fervente). “Alguns animais são mais animais que outros”. Os direitos que queremos dar aos animais, na realidade, são direitos “aos animais domésticos”. A estes nós queremos dar cidadania. Já aqueles que “existem para servir nossa gula”, não ligamos para seus direitos. Não n0 geral. São poucos os que estendem a crítica dos direitos animais aos animais que nos servem de alimento. É tão grotesco sacrificar um animal em nome da “proteção contra doenças” quanto matar um animal em nome da gula. Porém, quando matamos em nome da gula, ninguém fala nada. Aliás, confundimos constantemente “gula” com “alimento”. Ninguém precisa comer ‘baby beef’ ou caranguejo para viver, estas comidas são “luxos” que utilizamos para saciar prazeres. Matamos por prazer diariamente, mas não nos damos conta disto.
Este questionamento que faço é próprio da chamada “filosofia vegan”, uma corrente de pensamento que tem como objetivo ampliar os direitos humanos aos animais. Concordo plenamente com ela.
É curioso, porém, observar algumas manifestações públicas. A Carta Potiguar publica semanalmente uma série de artigos ligados a violações dos direitos humanos como homofobia, racismo e preconceitos em geral. Ainda assim, nenhum texto causou tanto desconforto ao público quanto o “Morte aos gatos”. Concordo completamente com o público que os argumentos expostos no texto são frágeis e dignos de revisão (sendo gentil e eufemizando a crítica).
No entanto, o que surpreende é observar que a comoção em favor dos gatos mostra-se muito superior à comoção em favor de humanos, que sofrem diariamente. Não se trata aqui de fazer comparações ou acreditar que devemos dar prioridade a um em detrimento de outro, creio que a vida como um todo deve ser valorizada, mas, como entender o fato de poucos ligarem para violação dos direitos humanos e MILHARES indignarem-se com a violação de direitos animais? É como se o ser humano não fosse também um animal, criação da própria natureza tal como os gatos, cachorros, vacas etc. etc. etc.
Trata-se de algo que merece atenção, é uma evidência do ódio que nutrimos contra nossa própria espécie. Se não ódio, no mínimo uma desvalorização, como se não fôssemos produtos da própria natureza. Observamos a desvalorização do ser humano claramente no discurso corrente. Tomarei como “exemplo” o caso da norte-americana que realizou há pouco tempo um transplante de rosto. Seu rosto foi completamente deformado por um ataque do “chipanzé de estimação” de uma amiga. Em um momento de fúria o animal desfigurou a amiga de sua dona em um ataque que durou mais de 10 minutos deformando-lhe completamente o rosto e arrancando alguns membros. Era um macaco relativamente “calmo”, famoso por fazer comerciais etc.. Ele foi morto pela polícia, cravejado de tiros.
Existe na internet um site que presta solidariedade à vítima do ataque do chipanzé… e também ao chipanzé. No site, o animal é inocentado com o seguinte raciocínio: “não podemos colocar a culpa nele, ele estava fora do seu habitat natural e vivendo enjaulado, era de se esperar uma reação assim devido ao alto índice de stress em que vivia”. Vejamos, o chipanzé tinha “carinho”, tinha “boa comida”, mas vivia enjaulado, isso motivou seu stress e “justificou” seu ataque (a culpa não foi bem dele, mas da condição em que vivia, embora algumas reportagens posteriores afirmem que o animal sofria também de uma doença que “atacava os nervos”). Concordo plenamente com a afirmação feita no site.
O que entristece é ver que a mesma relação não é feita com seres humanos. Se enjaulamos alguém, maltratamos, damos comida podre entre outras coisas mais e, depois, o indivíduo sai deste ambiente ainda pior do que entrou e trucida alguém, o que dizemos? “Mata! É vagabundo! Bandido! Não presta e nasceu assassino! Tem que exterminar! Não é digno de pena!”. Aliás, a expressão “pobrezinho, é vítima da sociedade” já é até jargão (aplaudido pelo público) de jornalista de TV em programa policial.
Não estou afirmando que este é o posicionamento de todos que defendem os direitos dos animais, deixo isto desde já claro. Alerto apenas para um certo fanatismo que podemos observar em muitas manifestações públicas. Continuando…
Quando observamos “ataques de fúria” de “animais não humanos”, a “culpa” nunca é do animal, mas da condição em que se encontra, basta observar os comentários dos leitores no Youtube ou blogs que isto fica bastante evidente. Com os humanos parece ser o contrário, dizem: “nasceu assim”. E esquecemos que os “instintos” são bem mais significativos nos demais animais que os da nossa espécie, justamente pelo fato de termos desenvolvido a “cultura”, algo tipicamente humano que “suprime”, até certo ponto, nossos desejos e nos obriga a manter padrões de conduta.
Esquecemos-nos que somos também animais (com cultura, mas animais) e que se um chipanzé tem “ataques de fúria” ao ser submetido a um determinado tratamento, não é de se surpreender ao encontrar comportamento parecido entre humanos. Diz-se também que o chipanzé tinha uma doença ligada aos nervos. Isso justificaria a agressão do chipanzé, o vitimando, e atribuindo ao ser humano o status de “ruindade inata”, já que “mata mesmo sem ter doença”. Mas devemos lembrar que qualquer animal com má alimentação passa a ter “super-excitação nervosa e tendem a ficar irascíveis” (fato exposto pelo médico e ex-diplomata Josué de Castro no seu livro “Fome, um tema proibido”). São várias as denúncias em relação a comida dos presídios brasileiros. São vários os depoimentos de presidiários e ex-presidiários que falam a respeito de comida podre servida como almoço. É de se esperar que humanos também tenham reações relativamente parecidas com a do chipanzé, devido uma “condição da cultura que o coloca num constante estado do super-excitação nervosa devido à má alimentação”. Ainda assim por que consideramos os animais demais “naturalmente bons” e a humanidade “naturalmente ruim”? O que leva um ser “vítima” e outro “assassino natural”?
Devemos tomar cuidado para que o movimento ecológico não se torne um pilar anti-humanista e devemos lembrar também que a “tolerância” é o próprio princípio que funda a ideia do direito dos animais.
Retomando ainda o texto que motivou esta postagem, o “Morte aos gatos”. É de se deixar claro também que a Carta Potiguar terá o prazer de publicar e divulgar (como já foi feito) textos que rebatam as opiniões dos autores do site.
Imagem: Africa