Uma longa tradição filosófica associa nosso comportamento e nossa personalidade ao que comemos. No passado, “tratados de medicina” afirmam que não é aconselhável dar pimenta para mulheres virgens. Acreditava-se que a pimenta iria gerar um “fogo” que levaria, mesmo a mais pura das mulheres, a cometer atos libidinosos. Em dias de hoje ainda vemos uma série de associações entre alimentos e comportamento, mas não com esta perspectiva.
Pesquisas mais modernas não associam diretamente alimento e comportamento. A associação é feita de forma distinta. O alimento é visto como ritual onde, através dele, incorporamos uma série de virtudes.
Já que estamos na semana santa… A chamada “primeira eucaristia” que tem seu rito “concretizado” ao se comer a hóstia e beber o vinho é um nítido exemplo do que tratamos. Ao ingerir a hóstia (o corpo de cristo) e o vinho (seu sangue) adquiro, naquele momento, as qualidades do próprio Deus. A comida, durante o ritual, tem a função de representar as qualidades desejadas.
Os rituais não precisam ser propriamente “sagrados” para que o alimento “represente” algo. Basta lembrar o caso das “lagostas de Bangu 8”. Em resumo, descobriu-se que “presos estavam comendo lagosta e salmão”. O alimento, de acordo com investigações, foi enviado por familiares de um dos presos. No geral, pouco importa se foram familiares, o que reina no imaginário popular é que “gente que está nesse tipo de lugar não merece esse tipo de comida”.
É precisamente sobre este ponto que chamo atenção. A comida representa, na realidade, o nosso próprio valor. Neste sentido a fome é, na realidade, a mais completa expressão da falta de prestígio que alguém possui, ela é o reflexo (não a causa) de um grupo de pessoas sem o menor prestígio social.
Durante o feridão da semana santa fui ao North Shopping. Na ocasião, jantar. Ao olhar para o lado da minha mesa vi os garçons de um restaurante que também jantavam. A cena revoltou-me quando me dei conta do contexto: eles estavam jantando “macarrão com salsicha”. Observei melhor e pude perceber que “macarrão com salshicha” não está entre as opções para os clientes. Mesmo um restaurante, que trabalha com toneladas de comida (e todos nós sabemos que quanto maior a produção o preço tende a cair), nega-se a dar comida de qualidade para seus trabalhadores. Prefere fazer “um prato à parte” e alimentá-los com o que existe de mais barato e menos custoso. Ainda repensaria a crítica caso o dono do restaurante estivesse alimentando um exército, mas tratam-se de poucas pessoas. Dar aos funcionários macarrão com salsisha para que? No final do mês economizar R$ 200 frente à um lucro de milhares de reais?
“Eles são clientes, devem comer bem. Você é empregado, não precisa de boa comida”.
Isto, no fundo, demonstra como alguns empresários tratam seus funcionários: querem serviço de primeira para seu estabelecimento e acham que ao pagar o salário de miséria instituído pelo Estado brasileiro “estão fazendo mais do que suas obrigações”. Esquecem-se que a vida é um “jogo social” e que pequenos gestos como dar “tratamento diferenciado” aos funcionários não passa desapercebido e é a fagulha para uma série de conflitos que poderiam ser evitados.
Esta análise que faço, provavelmente, todos os empregados do dono do estabelecimento também já fizeram. Este tipo de ação é a fagulha para o desdobramento do chamado “ódio de classe”. Os “donos” tratam os trabalhadores como “animais” e os trabalhadores odeiam os donos por isso e vão, sempre que puder, boicotar o ambiente de trabalho.
Ao ver isto a única coisa que me veio à mente foi o personagem João Romão, do livro “O cortiço”, piorado. João Romão era um “empresário”, dono de um cortiço, casado com uma escrava. Era tão avarento, mas tão avarento que comia as sobras de comida dos clientes para economizar com as refeições e pregou um “golpe” até mesmo na própria mulher. Ambicioso e sem escrúpulos João Romão tira o máximo que pode ao explorar o trabalho dos miseráveis. E eu pensava que João Romão era só literatura…