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Retrofascismo e a bomba tecnológica

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 “Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais” (Theodor Adorno)

Uma novidade ronda o início de século XXI: o Retrofascismo. Se o fascismo clássico foi uma reação à depresssão econômica e a humilhação do nacionalismo, o Retrofascismo atual é uma formação reativa contra a “bomba tecnológica”: o último espasmo do corpo diante do destino da virtualização da carne. 

O que há em comum entre os fatos abaixo?

1. Prisão pela Polícia Federal de Curitiba de jovens responsáveis por um blog que fazia apologia  à violência, sobretudo contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além da incitação do abuso sexual de menores. Os criminosos também apoiaram o massacre de crianças praticado por um atirador em uma escola na cidade do Rio de Janeiro em 2011. Além de suspeitas de que organizavam uma chacina contra estudantes de ciências Sociais da Universidade de Brasília;
2. As recorrentes notícias de homossexuais agredidos na região da Avenida Paulista, São Paulo, por grupos de jovens;
Relatos crescentes de prática de bullying digital nas escolas  (criação de perfis falsos nas redes sociais que agridem ou difamam pessoas ou instituições);
3. Principalmente após as últimas eleições presidenciais, redes sociais foram invadidas por mensagens incitando o ódio aos nordestinos e invocando um suposto “orgulho paulista”;
4. Vinte ciclistas atropelados intencionalmente numa mobilização do grupo Massa Crítica em Porto Alegre em 2011. Após os atropelamentos, o blog do movimento Massa Crítica vem recebendo ameaças anônimas onde se elogia a ação do motorista que intencionalmente atropelou os ciclistas, lamentam não ter morrido ninguém e incentivam novos ataques.

Esses episódios parecem ser exemplos de um fenômeno novo que ronda o início de século: o Retrofascismo. O fascismo, que supostamente jamais voltaria a acontecer novamente, retorna como farsa, como uma forma latente de personalidade autoritária, como uma formação reativa à bomba tecnológica em plena era democrática. Uma formação reativa ainda à espera de uma tradução política para se tornar um Estado Fascista.

Na sua forma clássica, após a Primeira Guerra Mundial, o fascismo surgiu como uma reação à condição da depressão econômica generalizada na Europa combinada com o senso de humilhação nacional. Alemanha, Itália, Espanha e Portugal deram uma guinada para estados autoritários cuja promessa de reerguimento econômico e moral estava baseada em um processo de “purificação” da nação: retorno aos valores tradicionais da nação corrompidos pelo capitalismo financeiro internacional (nas mãos dos judeus), eliminação de tudo que impedisse o reerguimento nacional (estrangeiros) e disciplinarização (militarização) do corpo da nação: controle dos civis por meio da prescrição de hábitos “saudáveis” (antitabagismo, higiene, assepsia e monitoramento médico – médicos da SS no caso da Alemanha –  da população). Tudo isso ancorado pelas estratégias modernas de propaganda que impactam as mídias de massa até hoje.

Na sua forma clássica o fascismo surge comoreação à depressão econômica e humilhação do nacionalismo

O surto fascista, na verdade a única contribuição à política do século XX à História, culminou com a II Guerra Mundial até derrota do nazi-fascismo.

Porém, pesquisadores como o cientista político canadense Arthur Kroker vem alertando desde o final do século passado para o ressurgimento do fascismo através de  traços latentes, surtos ou formações reativas, igualmente alimentadas pela depressão econômica e pelo senso de enfraquecimento do nacionalismo diante da Globalização. Porém, agora com uma novidade: a hiper-tecnologia que virtualiza o Outro e a si mesmo.

Para Kroker, o retro-fascismo é uma formação reativa dos “derrotados”, um “último espasmo do corpo diante do destino da virtualização da carne”.

“O fascismo característico que se pensou jamais acontecer novamente retorna como uma vingança, criando uma situação ambivalente de hiper-tecnologia combinada com primitivismo. De um ponto de vista, organismos sócio-biológico-linguístico (seres humanos) virtualizam as relações com os outros e consigo mesmos. (…) Nesse contexto de dupla mediação, fascismo é uma formação reativa contra a lógica da virtualidade (…)  A carne falhou. Os sinais desse fato são as operações realizadas pelo desejo por virtualidade e a reaparição do fascismo (o maior de todos os movimentos nostálgicos) – a vida dirigida pelo ódio (de si mesma) para destruir o Outro (e a si mesma). Fascismo: a revolta dos derrotados. A carne está sendo derrotada (…). Uma (essencial) definição operacional de fascismo: pessoas com severo ódio de si mesmas tentam salvar elas próprias às expensas dos outros e recebem em troca uma sádica recompensa.” (KROKER, Arthur. Data Trash – the theory of the virtual class. New York: Saint Martin’s Press, 1994, pp. 86-87.)

Se a depressão econômica e o enfraquecimento do nacionalismo foram as causas do fascismo clássico, hoje são os dois momentos de um único movimento ao qual Kroker define como “desejo por virtualidade” ou “reclíneo do corpo” (sobre esses conceitos veja links abaixo).

Retrofascismo e o desejo por virtualidade

Os ressurgimentos de nacionalismos e bairrismos (“orgulho paulista” ou sentimentos separatistas como “república de São Paulo”) surgem como reação ao movimento de Globalização onde a crescente liquidez dos fluxos financeiros enfraquece o poder do patrimônio local ou nacional.

A depressão econômica clássica do período entre guerras mundiais hoje é experimentada pelos ciclos depressivos das crises financeiras internacionais, como a última de 2008. Crises de realização dos lucros de papéis sem lastros que arrastam o Estado, as poupanças e as aposentadorias individuais para o ralo da ajuda dos bancos centrais  às quebras do sistema financeiro.

Mesmo em momentos de estabilidade econômica, o crescimento ocorre às expensas de práticas gerenciais  e políticas corporativas que produzem medo e insegurança: flexibilização das leis trabalhistas, contratos temporários, terceirizações etc, em ambientes de trabalho onde os empregados (ou “colaboradores”) são isolados em baias, incrementando o clima de paranóia.

Fascínio por gadgets e pragmatismo tecnológicos: retrofascismo e a Bomba Tencológica

A formação reativa a essa percepção é o desejo por pureza na busca de uma ressurreição impossível da carne: limpeza sexual, limpeza étnica, limpeza intelectual, limpeza racial etc. É a nostalgia por um corpo idealizado e poderoso, reforçada pelo ressurgimento, como farsa, de ideologias eugênicas e de pureza racial como clonagem e engenharia genética.

Esse mal estar pós-moderno constituído pelo medo e paranóia no mundo do trabalho aliado ao ódio de si mesmo (introjeção da culpa pela decadência do corpo e pela frustração no trabalho) resulta na clássica fórmula do fascismo latente descrita por Theodor Adorno em seus estudos sobre a personalidade autoritária na década de 40 nos EUA (a famosa pesquisa sobre a “Escala F”): “quem é duro consigo mesmo , também é com os demais”.  

A dureza contra os outros (estrangeiros, homossexuais etc.), ou seja, todos aqueles cuja percepção os rotula como “fracos” ou “inferiores” são a projeção do mesmo enfraquecimento interior diante de processos incompreensíveis, que apenas se potencializam na era da Globalização e da hiper-tecnologia.

Nos termos de Arthur Kroker, o Retrofascismo é a “nostalgia do futuro”.  Numa época de mal-estar e niilismo onde a tecnologia aponta não para a potencialização, mas para a substituição do corpo e do real (seja na financeirização da economia global, seja no ciberespaço), a última reação dos sujeitos é nostálgica: a recuperação da potência ao ser duro consigo mesmo e com os outros.

Assim como no trágico passado o fascismo recuperou antigas mitologias pagãs sobre super-raças ou de uma época de ouro de seres fortes e íntegros, no retrofascismo atual retornamos ao nacionalismo, racismo com muito misticismo New Age em plena hiper-tecnologia. Só conseguimos ter esperanças no futuro retornando ao passado.

Pior que as práticas isoladas de intolerância e preconceito é a preocupação de que o retrofascismo está à espera de uma tradução política para conquistar, mais uma vez, o Estado.

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