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Sobre o problema dos gatos

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Texto originalmente publicado aqui e como comentário de “Resposta ao artigo ‘Morte aos gatos’”.

Por Félix Maranganha

A Academia é pautada em ideologias, mesmo que não percebamos isso. Sociologia divide-se entre Maxistas e Anti-Marxistas. Letras tem uma guerra entre Tradicionalistas e Pós-Modernos. Filosofia é mais acirrado ainda, pois há pelo menos oito grupos em guerra, a saber: RealistasNominalistasMarxistasFenomenologistasAnalíticosEstruturalistasConceptualistas e Teórico Críticos. Mas existem duas correntes ideológicas padrão na Academia, que perpassam todos os cursos, grupos e setores, que vez por outra conseguem causar mais debates que quaisquer outros. Trata-se da guerra entre Fofistas e Especistas.

A diferença entre ambos pode parecer simples, mas envolve uma complexa rede de elementos biológicos da qual os seres humanos menos esclarecidos ainda não conseguiram se desvencilhar: o apego à fofura. Na pré-história esse apego foi importante para forçar os pais a preservar seus filhos (que nasciam fofos como todos os mamíferos). Hoje, isso virou ideologia.

De um lado temos o Fofismo. Essa ideologia se caracteriza pelo apego expressivo, público e quase irracional, incentivada por seus praticantes, a pequenas criaturas peludas, penudas ou felpudas conhecidas como gatos, cães, pombos, pardais ou qualquer outra criatura viva que atenda a seus ditames estéticos. Se a criatura não atender à sua visão estética de mundo, deve ser eliminada por representar um perigo real à sua segurança: ratos, carrapatos, urubus, gambás, cobras, escorpiões, baratas e outros seres vivos, alguns naturais ao ambiente onde são encontrados, mas perseguidos como qualquer pária ecológico. Animais peludos, felpudos e penudos, claro, não transmitem doenças, são fofinhos demais para representar algum perigo real!

De outro lado temos o Especismo. É caracterizado pela visão de mundo mais realista, porém mais arrogante. São geralmente pessoas que acham que Deus criou a humanidade como entidade superiora às demais criaturas e, por isso mesmo, a única dotada de valores como ética, direito à vida, alma e razão. Os especistas atropelariam um gato arbitrariamente pelo simples prazer de matá-los, assim como justificam todo e qualquer desmatamento em nome do progresso humano. Que importa se animais selvagens sã prejudicados no processo? Afinal, o que importa é o progresso econômico de um país!

Mas as aparências enganam. Muitos fofistas praticam atos de crueldade animal piores que o nazismo, e muitos especistas criam gatinhos em casa com o maior amor e carinho. O que os diferencia são os valores básicos do que consideram prioridade ética humana.

Os fofistas estabeleceram uma responsabilidade ética a falsamente ampla que qualquer criatura fofa assume prontamente uma posição superior à de qualquer outro ser humano. Talvez, por isso, tenhamos tanto Movimento Contra o Genocídio de Gatos nas Universidades, enquanto permanecem praticamente cegos ao genocídio humano na África, às ditaduras árabes, ao trabalho escravo na Ásia ou ao tráfico humano na Europa. Para os fofistas, a fofura de um gatinho recém-nascido é prioridade, a criança africana magra (e por isso mesmo menos fofa) não é prioridade.

Os especistas estabelecem uma responsabilidade ética mais estrita, mas estrita a tal ponto que qualquer ser humano que não possam ver ou ouvir diretamente, e tocar, deixa de ser prioridade. Sua percepção se fecha apenas em dar esmolas no ônibus, em alimentar um pittbull acorrentado no quintal, e em defender Direitos Humanos para Humanos Direitos. Enfim, os especistas consideram prioridade apenas aqueles que lhes interessam ou que possam beneficiar ou prejudicar a eles.

Eu discordo de ambos os lados. Primeiro, porque não considero um ser humano superior a um gato, um cão ou mesmo um rato. Segundo, porque pratico um sistema ético que vê com igualdade todas as criaturas (o Budismo). Terceiro, porque sou terminantemente contra a morte arbitrária de qualquer ser vivo (o que inclui seres humanos). Porém, é mais difícil levar o fofista ao esclarecimento que o especista. Por quê? O especista, basta demonstrar pela lógica que seu argumento tem furos e que ele próprio sai prejudicado (como demonstrar por estatísticas ou afirmar que problemas sociais como a violência decorrem da adoção em massa de concepção de mundo como a dele). O fofista é mais complicado, pois mesmo diante de todos os argumentos, sua emoção fala mais alto, e ele sempre protegerá os animais bonitinhos e fofinhos que não têm culpa de estar ali, na universidade.

O problema específico do fofismo

O que os fofistas esquecem é que a prioridade de uma espécie deve ser ela mesma. Se sobrar tempo e recursos a essa espécie, então aí sim poderemos priorizar outros seres vivos. Nisso, assumo a posição de que enquanto existirem no mundo fome, guerras, escravidão, perseguição, cerceamento da liberdade e doenças simples não-erradicadas, de modo algum irei priorizar uma população de gatos ou de cães na UFPB ou onde quer que seja (é o apelo que também faço aos especistas, que ampliem um pouco suas concepções de responsabilidade ética). Se uma população de animais bonitinhos e fofinhos que não têm culpa de estar ali começa a aumentar ao ponto de se tornar vetor principal de toxoplasmose, raiva, leptospirose, DAG, sarna, brucelose, calazar, criptococose, larva migrans e alguns tipos de gripe, então nada mais natural que controlá-la. Quem defende o tratamento amplo e irrestrito a todos os animais da população esquece o quanto é antieconômico fazer isso (não em termos pecuniários, mas em perda de tempo e gasto improdutivo de energia). A melhor saída de todas é controlar a população! Para isso, pode-se realizar o sacrifício (humano, é claro) de uma parte da população, e castrar a outra parte.

Mas há quem ache isso um genocídio, pois os animais bonitinhos e fofinhos que não têm culpa de estar ali seriam exterminados em pequenas versões de Auschwitz voltadas para gatos, cães e pombos. Os fofistas esquecem que há uma diferença bem clara entre genocídio e controle. Em um genocídio, uma pessoa elimina arbitrariamente, apenas porque acha o outro mais feio, mais baixo, mais escuro, menos ela mesma. Ou seja, no genocídio, as razões são a inadequação interpessoal, sendo os parâmetros de adequação definidos de forma arbitrária. No controle, a variável é outra: os seres mortos no controle são vetores de doenças e ameaças claras à saúde humana, e mesmo deles (qualquer estudo biológico sério aponta que a superpopulação de qualquer espécie é mais danosa que benéfica para a mesma). Logo, é genocida quem tem raiva de gatos e resolve matar todos na cidade. Faz controle quem sabe que o animal é vetor de doença e pretende manter a população na quantidade mais segura possível. Isso nos leva a outro ponto: mosquitos são inadequados e, se são mortos por vetorizarem doenças, e os gatos, que também vetorizam, não são mortos, significa que os fofistas praticam o especismo, pois suas razões são arbitrárias, e não justificadas.

Os mesmos fofistas hipócritas que defendem o direito dos gatos, os vermifugam. Querem salvar dez mil gatinhos urbanos bonitinhos e fofinhos que não têm culpa nenhuma de estar na cidade da morte arbitrária nas mãos dos Sádicos Especistas Assassinos Cruéis Genocidas, mas matam cem mil vermezinhos não bonitinhos e não fofinhos que também não têm culpa de estar ali. Carrapatos, baratas, ratos e vermes morrem só porque são menos fofos que gatos, cães e pombos. São mortos não porque causam doenças, mas porque prejudicam a fofura do objeto de atenção do Fofismo.

Por isso que considero o Fofismo um ato de egoísmo: para fazer a manutenção de sua necessidade natural de pegar em algo fofo (acho que isso é tão perigoso e viciante quanto qualquer droga), um fofista é capaz de prejudicar uma pessoa por meio das doenças dos animais de rua que eles mesmos protegem e alimentam. Ao mesmo tempo, as mesmas pessoas que se mobilizam ardentemente contra o assassinato em massa de animais bonitinhos e fofinhos que não têm culpa nenhuma de estar ali, fecham os olhos para a morte de milhões de seres humanos de todos os tipos e em todos os continentes que, justo graças às mazelas em que se encontram, são menos bontinhos e menos fofinhos, e muitos deles (segundo os fofistas, é claro) devem ter culpa de estar ali.

Por isso acho que estou no mais incoerente dentre os mundos possíveis, em que os valores são invertidos em nome de correção política.

 

Félix Maranganha é filósofo, budista, sinuquista e fãde pimenta. É autor do blog O Calango Abstrato.