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Gramática moral da “Correção Política”

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Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”

 

Como todos sabem, o termo “politicamente correto” é vulgarmente usado para se referir àquelas ações de intervenção  sobre a linguagem e a cultura, levadas a cabo pelos movimentos identitários, a fim de neutralizar – por efeito de mudança dos termos – formas de preconceitos e estigmas culturais supostamente enraizados na linguagem. Sua origem, no entanto, remonta aos anos de 1980, e foi mobilizado pela primeira vez por setores conservadores dos EUA com sentido de crítica aos chamados estudos culturais e suas “Políticas de Identidade”, acusados, por sua vez, de agirem de modo autoritário e policialesco no tratamento da linguagem. O argumento principal dos críticos aos movimentos de Política de Identidade era o do que, estes últimos, em suas investidas contra a linguagem, colocavam em risco a própria Cultura Ocidental, materializada nos diferentes tipos de expressão da cultura escrita e oral, a exemplo das obras literárias clássicas e do uso cotidiano da palavra. Desde então, fazemos uso do termo ‘politicamente correto’ em seu sentido originalmente negativo todas as vezes que enxergamos atos de censura da palavra, mesmo que se tratem de atos amparados juridicamente.

No entanto, o uso da palavra “politicamente correto” mais confunde do que esclarece o que se processa atualmente no campo das políticas de intervenção normativa sobre a linguagem. Principalmente porque reforça a opacidade do conteúdo moral de tais políticas identitárias.

Assim, só podemos entender o real significado da intervenção política sobre a linguagem a partir de sua gramática moral mais profunda, dito de modo mais explícito, como parte integrante de uma luta mais geral por reconhecimento de direitos. Para que fique mais claro ao leitor, é preciso rearticular o vínculo moral entre luta por reconhecimento jurídico e a chamada “Política de Correção”. E isso só é possível fazendo uma digressão sobre o movimento histórico de transição de uma “eticidade convencional”, própria das sociedades tradicionais para uma “eticidade pós-convencional”, dominante nas sociedades modernas ocidentais. Somente assim, ficará mais evidente o caráter moralmente evolutivo das políticas atuais de intervenção sobre a linguagem, ideia central que pretendo defender neste texto.

A evolução moral das formas de reconhecimento jurídico

Nas sociedades tradicionais, o reconhecimento de direitos sempre esteve ligado a estima social, isto é, ao valor social atribuído às propriedades e qualidades pessoais de um indivíduo, julgado positivamente por determinada  comunidade. Assim, o reconhecimento jurídico era classificado diferencialmente, e conforme o grau de status. Como não havia uma separação entre “honra” e “dignidade”, ser reconhecido como uma “pessoa de direitos” era ser ao mesmo tempo, portador de estima social. Nessas sociedades, onde os papéis sociais eram fortemente hierarquizados, a dignidade era, consequentemente, restrita.

Nas sociedades modernas, por outro lado, as relações jurídicas assumiram o formato pós-convencional, uma vez que houve uma nítida separação entre direito atitudinal (estima social) e direito infrajurídico (dignidade), consequência social da universalização da noção de direito humano. Agora, numa moral pós-convencional, todo e qualquer indivíduo, independente do papel que desempenhe, goza em tese de reconhecimento jurídico. E isso, de acordo com o filósofo Charles Taylor, representou um ganho civilizatório sem precedentes nas sociedades humanas, dado o quadro de nivelamento social da dignidade humana.

Mas e no plano individual? Qual é o significado mais evidente do reconhecimento jurídico moderno?  A garantia da imputabilidade moral do indivíduo em bases universais. Sua consequência emocional? Permite as condições necessárias para que o indivíduo possa estabelecer uma autorrelação prática de “autorrespeito”.

Não apenas isso, o reconhecimento jurídico constitui também uma proteção social contra o rebaixamento que afeta o autorrespeito moral do indivíduo. Isso porque ele preserva a integridade moral individual ao combater normativamente quaisquer formas de desrespeito decorrentes de rebaixamento ou/e de humilhação social. Pois bem, conforme destacou o filósofo alemão Axel Honneth, um dos “sintomas” desenvolvidos pelo rebaixamento moral é o sentimento de vergonha social, cujo conteúdo emocional se caracteriza pelo rebaixamento do sentimento do próprio valor do indivíduo atingido. Uma autoimagem depreciativa que neutraliza e mina os ideais de ego de um sujeito.

É justamente contra a lesão psíquica dos ideais do ego que surgem as chamadas “políticas de identidade”, estas, articuladas principalmente na forma de luta por reconhecimento jurídico.

De modo geral, aquelas políticas de identidade, derivadas primeiramente das lutas do movimento negro por direitos civis nos EUA durante a década de 1960, reivindicam a ampliação de direitos individuais fundamentais, o “direito a dignidade” dos grupos estigmatizados socialmente.

Mas por que exatamente a “correção” da palavra tem tanta importância para os ativistas das políticas de identidade? Ora, justamente porque ‒ apoiados teoricamente na linguística, na psicanálise lacaniana e na sociologia de matriz durkheiminiana ‒ os mesmos compartilham de uma compreensão de que a linguagem, entendida enquanto “sistema simbólico”, atua fortemente (e de modo “inconsciente”) na constituição da nossa identidade. E mais, que os “sistemas de classificação” (linguagem) ajudam a formar a ordem social, se reproduzindo nos rituais e nas práticas.

Nesse sentido, a intervenção política sobre a linguagem e a palavra representa muito mais do que o termo pejorativo “politicamente correto” tende a nos transmitir. A intervenção política sobre a palavra é uma “luta por classificação”, ou melhor, um modo de luta por reconhecimento onde a arena de disputa é o “simbólico”, e o que está em jogo é o poder de representação sobre o mundo e também sobre os diferentes grupos. Inclusive os grupos marginalizados e estigmatizados pelos atos de fala.

Disse Heidegger, outro filósofo alemão, que a linguagem é a morada do ser. Posteriormente, o sociólogo francês Pierre Bourdieu acrescentou: as relações de poder e dominação também habitam a linguagem. É esse mesmo entendimento que alimenta as ações de intervenção política sobre as falas e os usos da linguagem. Mas voltemos à crítica inicial às “Políticas de Correção” mobilizada pelos conservadores e atualmente pelos ultraliberais. Dessa vez, colocando a crítica na forma de questionamento: a política de intervenção sobre a linguagem representa uma ameaça a Cultura Ocidental? Ou na verdade, representaria apenas a radicalização de um dos ideais mais importantes para a mesma Cultura Ocidental Moderna, qual seja, o de afirmação da dignidade humana?!

Se a segunda hipótese estiver correta (e a reconstrução do percurso histórico das formas de relações jurídicas confirmam isso), então não estaríamos vivendo um retrocesso civilizatório tal como pregam os ultraliberais, mas sim, uma evolução moral das sociedades ocidentais em direção a um sentido ampliado de valor social da pessoa humana.

Pessoalmente, enxergo tal fenômeno político como mais uma conquista sem precedentes em matéria de garantia do direito a dignidade, um salto civilizatório, mas que, no entanto, confronta diretamente a ideologia ultraliberal e sua defesa da liberdade irrestrita do pensamento. Principalmente em sua versão mais perversa, a que se apoia no ideal de liberdade para reproduzir na linguagem e no discurso, racismos e outras formas de estigmas sociais contra grupos e culturas diferentes (o caso das comédias ‘stand up’ é exemplar).

Claro que um ultraliberal pode sempre replicar: “mas os indivíduos são suficientemente inteligentes para entender e refletir autonomamente sobre o sentido e o uso de uma palavra”. Sinceramente, considero esse argumento um tanto ingênuo. Afinal de contas, não basta às pessoas julgarem reflexivamente o mundo e o sentido do mundo para que automaticamente respeitem a integridade moral de uma pessoa. É preciso que elas compartilhem também um sentido comum de moralidade e dignidade humana. E isso não ocorre por efeito de “tomada de consciência”, mas é o produto de processos contínuos e duradouros de aprendizado moral intersubjetivo, muitos deles irrefletidos. Processos de aprendizado moral derivados, por sua vez, de lutas por reconhecimento. Principalmente numa sociedade ultraliberal e individualista como a brasileira.

Agora é claro que todo esse “processo civilizatório” não ocorre sem equívocos e excessos, e os inúmeros casos atuais de censura a obras literárias são exemplares do excesso das políticas de intervenção sobre a linguagem. Por outro lado, quem disse que nosso aprendizado civilizatório seria fácil? Se assim o fosse, não seria “aprendizado”.

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura