Muitos torcem o nariz quando escutam o termo “politicamente correto”. Com pressa e pré-juízos, reportam-no à patrulha, censura, hipocrisia, falsidade. Ao fim e ao cabo, ele não passaria de uma veleidade desnecessária ou embuste forçado de pessoas “certinhas” e “pentelhas” que querem ditar novos modos de se expressar aos demais. O “politicamente correto” é, então, reduzido uma mera etiqueta política de boas maneiras, em particular quanto ao emprego das palavras corretas em relação às minorias (mulheres, homossexuais, negros etc). Nada pode estar mais equivocado.
A expressão, carregada de sentidos negativos, foi ela própria cunhada de forma reativa. Sua estereotipização e reducionismo são produtos da reação da direita norte-americana nos 80 e 90 às exigências de institucionalização das demandas de reconhecimento das minorias e grupos subalternos nas mais diversas esferas, assim como de suas críticas e denúncias ao racismo, sexismo, machismo e colonialismo presentes e infiltrados em práticas, ideias, concepções, atitudes, tradições, etc.. Entre essas esferas e questões, sem dúvida, a mais destacada e polêmica delas refere-se ao uso da linguagem para as descrições e autodescrições dessas minorias.
No contexto dos Estados Unidos, o ataque e a indisposição dos setores conservadores focam principalmente nesse ponto acima para criticar as “ações afirmativas” e acusar o que seria um suposto policiamento ou hipocrisia do discurso da esquerda e setores mais radicais do chamado multiculturalismo e dos movimentos sociais de gênero, étnicos, raciais, entre outros. No contexto brasileiro, por sua vez, o discurso “crítico” contra o “politicamente correto”, nos setores conservadores e libertários, mobiliza a ameaça à liberdade e o tolhimento da espontaneidade como os grandes perigos desse último.
Mais importante do que o termo em si ou sua origem profana, é o impulso básico e político que o move, sua razão de ser. Esse impulso básico tomou uma forma mais clara na arena pública no final dos anos 60 e começo dos anos setenta, quando, no seio das democracias liberais, os movimentos pelo reconhecimento das identidades baseadas no gênero, raça, linguagem, etnia e sexualidade desafiaram os princípios universalistas na cultura, no direito, na política, no cotidiano e os quadros semânticos e normativos pelos quais as sociedades ocidentais organizavam a percepção das identificações e pertenças. Luta por reconhecimento ou movimentos pela identidade/diferença. A questão do “politicamente correto” está envolvida por esse pano de fundo.
No entanto, sua grande contribuição prática – e isso basta para pensarmos duas vezes antes de desqualificá-lo sumariamente – foi lançar na esfera pública, isto é, publicizar e difundir uma das ideias mais importantes do século XX, qual seja: a de que a linguagem, as palavras, criam realidades, que elas não são neutras, nem inofensivas.
As palavras não são nem meras cópias nem se limitam a estabelecer uma função de correspondência lógica e linear do real. A linguagem interfere e age positivamente, constituindo, o real. Não se trata simplesmente de afirmar que na linguagem, nas palavras, escondem-se preconceitos, estigmas e formas de inferiorização e desqualificação. Trata-se, fundamentalmente, de conceber a própria linguagem como uma das instâncias produtoras e reprodutora de relações de dominação, preconceitos e estigmas sociais. Desse modo, a linguagem, seus sentidos e vocábulos, ganham um sentido político.
As medidas alternativas e a linguagem inclusiva e não preconceituosa, isto é, não estigmatizadora e desqualificadora, derivam desse modo politizador de se compreender a linguagem e sua prática. Portanto, somado à luta por direitos das minorias, o “politicamente correto” com a linguagem inclusiva além de acelerar o processo de reconhecimento das diferenças e de combate às formas culturais de assujeitamento, hierarquia e inferiorização de certos grupos de pessoas, lhe conferiu amparo institucional a partir do qual se pode lograr êxito tanto em um como no outro. Esse processo, cujo protagonismo, queiram ou não, foi dos defensores do “politicamente correto”, radica as raízes de boa parte das importantes mudanças de mentalidade, de formas de convívio e de normas que, nas últimas décadas, nossas sociedades conheceram.
No entanto, nem essas mudanças e contribuições conduzidas pelo “politicamente correto” foram capazes de impedir que abusos e excessos pouco refletidos fossem cometidos em nome das motivações e interesses ideais da igualdade, do antirracismo e do combate aos preconceitos e formas de inferiorização social, sexual, etc..
Num gesto anacrônico e despropositado, se ventilou, em vários lugares do mundo, a possibilidade de se vedar ou controlar o acesso a obras literárias sob a suspeita destas conterem em suas páginas e ideias manifestações preconceituosas e opressoras às chamadas minorias. Dante e Monteiro Lobato são alguns dos nomes que sofreram nas mãos, cabeças e canetadas inquisitoriais do “politicamente correto”.
Uma vez inseridos e institucionalizados no Estado, os representantes de movimentos e grupos políticos ligados a essas questões bem sabem que sua ação e intervenção passam a gozar de maior força e legitimidade. Familiarizam-se não apenas com os meios e instrumentos mas com a própria racionalidade do Estado e da burocracia. Desse modo, mergulham de cabeça na luta pelas classificações e pelo monopólio dos sentidos sociais. Tornam-se pretendentes ao monopólio do poder de julgar e classificar.
Talvez, os excessos e abusos das motivações do chamado “politicamente correto” se expliquem por esta intrigante contradição de agora ocuparem o lugar institucional de onde, durante muito tempo, se irradiou o poder, e sua legitimidade, das classificações e sentidos que outrora combatiam. A proximidade e convivência com a instituição cujo poder de definir o sentido legítimo da vida social foi, desde sempre, um de seus principais objetivos e finalidade, vital para sua própria reprodução, não poderia passar incólume, sem efeitos, sobre os modos de agir e pensar dos atores, mesmo daqueles que se engajam como combatentes do preconceito e da dominação. Como se poder ver, nas últimas e recorrentes polêmicas, a conquista de posições estratégicas enraizadas no Estado, que tantas vitórias proporcionou, teve, também, o seu preço.