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Sobre escolhas impostas, cachos e pranchas

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Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”

Não há uma pesquisa que fale de todos os grupos humanos que já existiram e seus modos de viver, no entanto a vasta produção da Antropologia – para falar apenas de uma das diversas áreas voltadas para o estudo do Homem – ao menos permite que algumas considerações sejam feitas. Partindo desse pressuposto, afirmo a ausência de notícias sobre grupos humanos nos quais seus membros não tenham desenvolvido técnicas para manipular sua aparência, seja por meio de profundas alterações físicas – como as milhares de plásticas ou as tatuagens maori –; modificações temporárias (maquiagens, pinturas indígenas…), ou mesmo em relação as modificações realizadas nos cabelos, sobre as quais pretendo dar algum destaque.

Não é necessário muito esforço para nos depararmos com os inúmeros salões de beleza, dos mais variados tipos, direcionados para diversos segmentos da sociedade. Pra mim, é sempre difícil saber se é mesmo um salão de beleza ou uma sorveteria. É chocolate, é baunilha e só falta agora eu chegar em um salão desses e encontrar um anúncio: ATENÇÃO, NOVA ESCOVA PROGRESSIVA SUPER-REVOLUCIONÁRIA: NAPOLITANTO. ALISAMOS SEUS CABELOS E AINDA O DEIXAMOS COM TRÊS CORES!

Bem, exageros a parte, não dá para ignorar que o desejo por ter os cabelos lisos, assim como a constante busca pelas cirurgias plásticas, devem ser pensados no contexto de uma imposição de um modelo de beleza, quase uma ditadura estética, que é construída a partir de disputas pela hegemonia do belo, isto é, ela se constrói a partir de competições – que muitas vezes nos passam despercebidas – pela exaltação deste ou daquele modelo como sendo mais apropriados, mais bonitos, de mais ou menos bom gosto. Nesse campo se travam batalhas homéricas, e aqueles que não se encaixam no padrão hegemônico são logo apontados como bregas, “sem vaidade”, “mulambentos”, e uma gama de outros termos usados para rebaixá-los socialmente. Nos termos do sociólogo Norbert Elias, essas relações conflituosas – também presentes em qualquer contexto cultural – se dão entre estabelecidos – grupos que conseguem, em meio as disputas, impor suas perspectivas como melhores – e os outsiders – grupos que vivenciam um cotidiano de estigmatizações que, em muitos casos, chegam a ser incorporadas a suas práticas e perpetuadas.

No entanto, é importante ressaltar que tais relações não são dados da natureza, ou evidências de ações e reações instintivas. Muito pelo contrário, tratam-se de relações de disputa e dominação construídas sociohistórica e culturalmente, podendo, portanto, serem questionadas e desconstruídas. Elias aponta que isto pode ser realizado a partir de dois fatores interdependentes: uma percepção crítica das configurações que entrecruzam os sujeitos e que compõem sua realidade e; um sentimento de pertença que os una ao redor de um objetivo comum. Evidentemente que isto não se dá do dia para noite, mas os movimentos sociais, em toda a sua pluralidade, são amostras do quão possível e importante tais reações são. Trabalhadores, mulheres, homossexuais, lésbicas, negros, são apenas alguns dos grupos que vêm historicamente questionando os estigmas e humilhações sociais a si impostos. No caso desses últimos, os negros, a história recente nos dá importantes amostras das lutas implementadas, indispensáveis na construção e acesso aos direitos civis, políticos e sociais.

Atualmente o Movimento Negro, atua em diversas frentes, construindo críticas pertinentes das mais diversas. Uma dessas, sem dúvidas, tem relação com a estética dos cabelos hegemonicamente imposta como mais bonita. Não faltam críticas ao uso de escovas – seja lá do tipo e sabor que forem. Multiplicam-se os cabelos black, as tranças nagô, os dreads, o que, até certo ponto, pode ser visto como fruto de uma desconstrução de ideias como “nêgo não pode ter cabelos grandes”, “cabelo ruim”, “cabelos rebeldes”, e por ai vai, evidenciando que cada uma dessas categorias foram histórica, social e culturalmente concebidas a partir de formas naturalizadas de rebaixamento e humilhação social dos negros.

Claro que isto não se evidencia apenas na estética dos cabelos, mas nas piadas – que em muitos casos são formas sutis de ‘violência simbólica’, legitimando preconceitos –, em expressões tão corriqueiras que não nos damos conta do tipo de rebaixamento social por elas carregado, como “amanhã é dia de branco”. Nesse sentido, os movimentos negros têm logrado sucesso, dando visibilidade a problemas que normalmente são empurrados para debaixo do tapete. Sob certa perspectiva pode-se até dizer que isto denota um comportamento politicamente incorreto, se por isso compreendermos aquele comportamento que questiona o status quo, gerando necessários constrangimentos, questionando a realidade como um dado da natureza. No entanto, não apenas os movimentos negros, mas as diferentes correntes dos movimentos sociais, ao defenderem suas bandeiras de militância parecem seguir a terceira lei de Newton, reagindo aos estigmas que lhes foram/são impostos de forma equivalente às ações que durante tanto tempo sofreram.

Qual o resultado disso? Dentre tantos, quero destacar um: a construção de discursos totalitários e, por que não dizer, politicamente corretos. Aqui, podemos retornar a questão dos discursos em defesa dos “cabelos negros”. Se, por exemplo, a referida expressão “cabelo ruim” está carregado de um essencialismo, não me parece menos essencialista e preconceituosa uma postura que condene ao ostracismo uma pessoa autoidentificada como negra que resolve fazer uma escova. Nesse caso é comum ouvir frases – geralmente do militantes, arautos da “estética da raça pura” – como “Essa neguinha só quer ser branca”, “Tadinha, tão alienada”, “Assuma seus cachos” – numa clara alusão do cabelo cacheado como “mais natural”. As críticas à homogeneização estética se tornam tão extremistas que findam por exaltar outra forma de homogeneização tão politicamente correta quanto aquela criticada.

O conhecimento sistemático das exceções em toda sociedade humana é importante, pois nos ajuda a questionar a noção de normalidade como algo imutável, indica que a realidade pode ser questionada e modificada. Também é importante percebermos que nas sociedades modernas ocidentais há uma exaltação da figura dos indivíduos como seres autônomos, aqueles que por mais que façam parte de grupos, desejam se fazer exceções, e por mais que componham um grupo, buscando se adequar a eles, também buscam “deixar a suas marcas”, ter o seu “estilo próprio”. Não é difícil notar que em lugares onde a maior parte das pessoas é loira, algumas pintam suas madeixas de preto; em lugares de predominância com cabelos lisos, fazem cachos, e assim por diante.

Oras, curioso que o questionamento de uma imposição de padrões de beleza finde por não gerar a liberdade expressão que se desejava, do contrário, muitas vezes cai-se em uma ditadura estética que gera um isolamento simbólico, capaz de reduzir as expressões estéticas a uma nova padronização. No caso do público negro – o que se potencializa quando se trata de mulheres – parece que o fato de criticarem a imposição do cabelo aparentemente liso as impede de ter a chapinha, escova, ou seja lá o que for, como uma opção possível de manipulação de sua estética. O questionamento das imposições estéticas parece impor outra. Em vez de expandir o leque das expressões e desejos de mudança, criam-se mais mecanismos de controle da expressão da subjetividade do sujeito. O questionamento ao politicamente correto transmuta-se ele próprio naquilo que criticava.

Não se trata de ignorar a importância dos movimentos sociais, suas bandeiras e militâncias, mas de provocar seus representantes, ao conquistar seus direitos, a não caírem no trágico erro de compactuarem com a mesma lógica que outrora lhes foi imposta, se assemelhando ao escravo alforriado que conseguiu comprar um escravo branco para açoitá-lo todos os dias. Ele não percebe que, ao exercer o mesmo papel e tomar as mesmas atitudes que lhes foram impostas, apenas reproduz a lógica dominante e se torna mais uma vez seu escravo. É importante que as conquistas sejam festejadas, mas também o é o não deslumbramento com elas ao ponto de manterem-se as lógicas criticadas.

Dessa forma, não se trata de questionar qual o sabor/tipo das escovas que se tem preferência, mas de pensar acerca das motivações, incentivar as desconstruções, desnaturalizar modelos, construir caminhos que possibilitem expressões subjetivas múltiplas, rompendo com práticas hierarquizantes. O desejo de mudança do sujeito, sejam pranchinhas, escovas, cachos ou dreads, não apontam para um estética mais ou menos natural, mas se dão a partir de construções sociais, circunscritas em diversos contextos que se entrecruzam.

Que as reivindicações por direitos possibilitem a expressões variadas, de todos os tipos, de todas as cores – mais diversificadas que as três da tal escova napolitana!!!

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura