Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”
Das coisas em que a gente acredita
Desde que saímos das trevas da Idade Média para as luzes da Idade Moderna, baseamos nossa experiência em critérios racionais e cientificistas. O mito moderno de que a Ciência, com toda racionalidade inerente a ela, seria um meio de nos tirar da escuridão se sobrepôs ao mito medieval de que a única salvação possível seria derivada da fé.
Louvar a Ciência como meio de salvação e explicação ‘plausível’ de fenômenos não só naturais, mas, recentemente, também humanos e culturais, pode explicar muitas de nossas crenças atuais quando pensamos sobre os “produtores e difusores de conhecimento”. Todas as nossas instituições que produzem ou difundem conhecimento gozam, via de regra, de um certo ‘prestígio social’. É o caso de universidades, editoras ‒ comerciais e científicas ‒ e meios de comunicação.
No nosso imaginário corrente, a Ciência e a verdade dela resultante, tidas como nobres, elevadas e incontestáveis, merecem ser louvadas quase que como uma religião. Disso resulta nosso 8º pecado capital, ou nosso 11º mandamento: não pecarás contra a Ciência. Afinal de contas, sendo ela um deus moderno, nós – os meros mortais – não ousaríamos colocar nada acima dela. Acreditando na “salvação científica”, raras vezes cogitamos a hipótese de que alguém pudesse se atrever a deixar a Ciência em segundo plano.
(Aqui cabe um parêntese: eu, pessoalmente, sou mais cientista que religiosa e acredito que a importância da Ciência já foi comprovada cientificamente [um fato que é comprovado única e exclusivamente por si mesmo, divino, não?]. Meu ponto aqui, de forma alguma, é contestar a Ciência, mas sim entender o imaginário decorrente dela. Não me joguem na fogueira.)
Acontece que, como toda boa religião dos nossos dias, a Ciência também não pode existir fora do sistema econômico capitalista em que vivemos. Produzir e difundir conhecimento custa dinheiro. E produzir e difundir bons conhecimentos custa muito dinheiro, segundo ouvi dizer. Permeando toda a discussão sobre relevância e importância do conhecimento a ser pesquisado, produzido e publicado, há, em maior ou menor grau a depender da ética em que cada agente se baseia, questões de cunho econômico que devem ser levadas em consideração.
Das coisas nas quais devemos acreditar
Passada a fase de produção do conhecimento – em geral, mas não exclusivamente, pelas universidades – é necessário e desejável que esse conhecimento seja difundido entre nós. Afinal de contas, a salvação científica é dever e direito de todos. É aí que entram as editoras.
As editoras foram até pouco tempo responsáveis exclusivas pela publicação de obras. Ainda hoje, apesar da facilidade de publicação de informação e conhecimento com ferramentas como a internet, por exemplo, são elas que gozam de maior credibilidade e legitimidade para suas publicações. Além disso, emprestam sua credibilidade aos autores que publicam, ao mesmo tempo em que a aumentam valendo-se de suas escolhas editoriais. (Para os cientistas de plantão interessados na comprovação científica do tema, vale lembrar a “Economia das Trocas Simbólicas”, de Pierre Bourdieu)
Tendemos a aceitar o conceito de “qualidade” imposto pelo conselho editorial das editoras nas quais confiamos. Uma chancela editorial de peso coloca um autor um passo à frente para ter seu “modelo” aceito por seus pares e leitores.
Acontece que as editoras, independente de seu grau de comprometimento com a difusão de boa literatura – ficcional ou cientítica, são empresas não filantrópicas. Elas buscam o lucro não porque são representantes do Mal capitalista, mas porque sem ele não poderiam sobreviver. (todo mundo tem contas pra pagar!) E, daí, não importa a qualidade da obra apresentada ao conselho editorial: se ela não se encaixar no orçamento da empresa, ela não será publicada para que você a leia. E o orçamento anual, não se engane, envolve mais do que a quantidade de dinheiro disponível para investimento. Há aí, ainda, uma questão de cunho político. Os conselhos editoriais decidem politicamente – e se importando muito pouco com a tal da Ciência de qualidade – onde o dinheiro disponível deverá ser investido.
Usando argumentos como “orçamento anual” e “linha editorial”, as editoras deixam de publicar uma infinidade de conhecimentos de qualidade produzidos por aí. E, se valendo de um direito muito recentemente reconhecido e ainda muito controverso chamado Direito Autoral, fazem do conhecimento um bem material que só pode ser disposto nos termos e condições estipulados por elas. Uma vez em posse do direito de explorar comercialmente o conhecimento e a informação, as editoras os divulgam da forma que acharem mais conveniente. E enquanto acharem conveniente (orçamentos e linhas editoriais variam muito ano a ano).
(Isso posto, acho importante ressaltar que o Direito Autoral nada tem a ver com o direito do autor em receber pelo seu trabalho. Uma vez cedido, em geral a um valor fixo, a exploração fica toda a cargo da empresa que o adquiriu. E é por isso que, em vez de Direito Autoral, prefiro nomear esse fato como “Privilégio de divulgação de conteúdo informativo”. Acho mais honesto.)
As editoras, então, segundo seus próprios valores (pecuniários ou não), realizam uma censura prévia das obras que moldarão o imaginário coletivo de sua época. O certo, o errado, o preconceituoso, o anacrônico em um trabalho podem, e devem, sempre ser submetidos à análise e ao debate – como é o caso da atual polêmica sobre a Divina Comédia, de Dante Alighieri, na Itália. Mas, enquanto a legitimação para publicação e exploração de produtos intelectuais for direito privado e exclusivo de pessoas ou instituições, esses debates não passarão da página 2.
Das coisas como elas são (independente do que você acredite)
Você acha que, no Estado Democrático de Direito em que vivemos, você é livre para ler o que quiser. E, infelizmente, você é livre apenas para ler o que publicam e possibilitam – ou permitem – que você leia.
Entenda a Série: Da Correção Política à Censura