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Os guardiões da chave do Paraíso

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 Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”

Politicamente correto. Certamente o leitor já ouvir falar dessa expressãozinha mágica que tem ganhando notoriedade nos últimos tempos. Porém, a sua aparição no mundo, principalmente no virtual, é diretamente proporcional à ignorância que ela espalha na cabeça de muita gente. Sabe-se que a correção política é uma coisa que pretende excluir piadas de gays, negros, anões, loiras etc. Mas será apenas isso? Para nossa desgraça, leitores, ele, o politicamente correto, é muito mais do que calar nossas bocas para tais gracejos. Vejamos de onde veio isso e para onde ele pode nos levar.

Ora, meus amigos, é preciso ter em mente que essas ações, quando aparecem diante dos nossos olhos, é porque já foram elucubradas dentro das universidades pela intelectualidade, senão nas brasileiras, nas estrangeiras – notadamente americanas – chegando por aqui algum tempo depois em razão do nosso costumeiro atraso intelectual e imperiosa necessidade de importar os modismos acadêmicos estrangeiros. O politicamente correto, portanto, não é nada mais do que outro desses modismos importados. Mas é um modismo poderoso, porque tem um fundo político baseado no marxismo – linha de pensamento incrivelmente aceita e prestigiada pela própria intelectualidade brasileira que hoje se contorce ao ver os agentes do politicamente correto perderem as estribeiras.

O que hoje ocorre no Brasil em matéria de atuação da patrulha politicamente correta é um fenômeno já experimentado pela intelectualidade universitária americana desde a década de 80/90. Ou seja, até nisso estamos atrasados. Nos Estados Unidos, como relatou Roger Kimball no livro “Radicais nas Universidades: como a política corrompeu o ensino superior nos Estados Unidos da América,” (Ed. Peixoto Neto, 2010) o movimento politicamente correto andou a criar corpo com o ataque ao cânone literário e àquilo que o autor descreve como os “ideais de objetividade e de busca desinteressada do conhecimento”.

Mas qual era o discurso que os radicais usavam para atacar um postulado tão idílico quanto o que sempre foi consagrado pelo pensamento universitário? A justificativa era que a cultura ocidental, fundadora do cânone universitário tradicional, era intrinsecamente repressora das minorias que não se adequavam aos seus preceitos milenares. Pois bem. Partindo deste ponto, e fundamentado nas lições de luminares marxistas como Herbert Marcuse, Antônio Gramsci e do próprio Karl Marx, os radicais passaram a orquestrar um ataque histérico e sistemático contra os postulados da cultura ocidental, rotulada de machista, sexista, elitista, homofóbica, racista etc., de modo a enfraquecer o seu ensino nas universidades americanas.

Um dos maiores ideólogos marxistas do século XX, Herbert Marcuse, assentou em seu ensaio intitulado “Tolerância repressiva” que o revolucionário deve ser “intolerante perante as políticas predominantes, atitudes e opiniões”, o que significa ser intolerante com os costumes arraigados na sociedade ocidental burguesa, e, por consequência, com sua criação intelectual. A intenção é clara: destruir todo este apanhado de obras e pensamentos produzidos pelo gênio humano ocidental a fim de instalar a “tolerância às políticas, atitudes e opiniões que são proscritas e suprimidas”, inaugurando o reino da tolerância seletiva com vistas a um objetivo maior que é a demolição dos pilares da sociedade burguesa.

No ensaio em questão, acrescido pelas ideias expostas no “Prefácio político” que antecede o famoso “Eros e Civilização”, Marcuse sustenta que a tolerância praticada na sociedade serve à causa da dominação e da repressão das minorias oprimidas, lhes dando espaço para oposição, mas uma oposição que se faz dentro da lógica dominadora, cuja possibilidade de libertação é zero em face da mecânica dentro da qual se exerce, permanecendo minoritária e oprimida enquanto vigorar a lógica burguesa de tolerância.

Para modificar esse estado de coisas, Marcuse diz aos intelectuais “… que é a sua tarefa quebrar a concretude da opressão a fim de abrir espaço mental no qual esta sociedade pode ser reconhecida como o que é e faz”. A tarefa é simples: incitar as pessoas, principalmente jovens, a questionar os princípios sobre os quais se assentam a sociedade burguesa a fim de ser intolerante com eles, tachando-os de todos os epítetos por demais conhecidos, incluindo-os no alvo por serem frutos deste pensamento nefando, as obras produzidas pelo gênio humano ocidental, tais como “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e as peças de Shakespeare, hoje rotulados de homofóbicos, racistas, machistas etc.

Marcuse ainda se rebela contra os padrões estéticos vigentes para as artes por entender que eles neutralizam mensagens políticas que agridam o status quo dominante; tal padrão estético coloca fora do conceito de arte aquelas manifestações que fogem deste padrão e veiculam uma mensagem subversiva, submetendo-as ao campo da pseudoarte ou não arte. Daí porque é necessário também implodi-los a fim de permitir a liberdade de criação direcionada contra o poder. Ou seja, aquele quadrinho bem pintadinho de Leonardo da Vinci que você gosta de admirar em um museu, por exemplo, é nada mais do que um instrumento de dominação e alienação, e, por isso, de acordo com essa turma extremista, deve ser queimado ou jogado na latrina mais próxima.

Este é o plano idealizado e que vem sendo executado. A tese é confirmada faticamente por Roger Kimball, na obra já citada:

“As denúncias de ‘hegemonia’ da cultura ocidental e das instituições liberais que ressoam tão insistentemente dentro de nossas faculdades e universidades atualmente não são conversa-fiada, e sim representam um esforço organizado para atacar as próprias fundações da sociedade que garante a independência da vida cultural e artística – inclusive a independência das nossas instituições de ensino superior”.

Acha exagero? Vamos aos casos citados pelo próprio Kimball, decorrentes desta forma extrema de pensar.

A convicção que une esses grupos díspares ganhou uma dramática manifestação na Universidade de Standford, no fim dos anos 80, quando Jesse Jackson e cerca de quinhentos estudantes protestaram gritando ‘hey hey, ho ho, Western culture’s got to go’”. (p. 22)

O que significa, por exemplo, o fato de a diretora Hilda Hernandez-Gravelle, cujo escritório de Relações Raciais e Assuntos de Minorias em Harvard deu início ao programa AWARE, ter pedido que as festas nostálgicas com tema dos anos 50 fossem banidas porque o racismo era irrestrito nos Estados Unidos na década de 50? Ou de Barbara Johnson, professora de francês de Harvard, ter declarado no simpósio do AWARE que ‘os professores deveriam ter menos liberdade de expressão que os escritores, porque dos professores se espera que criem um mundo melhor’?”. (p. 110)

No Smith College, um folheto é distribuído aos calouros, listando uma longa série de atitudes politicamente incorretas que não serão toleradas, inclusive o pecado do ‘aparencismo’, isto é, o preconceito de acreditar que algumas pessoas são mais atraentes que outras”. (p. 28)

Tais manifestações culminaram na exclusão, em 1988, da disciplina “Cultura Ocidental” da grade curricular obrigatória na Universidade de Standford. (p. 20)

Inspirador, não? Daí porque não causa surpresa a censura a Dante Alighieri e outras criações monumentais da civilização ocidental. Dicionários? São apenas a ponta do iceberg. No fim do livro, Roger Kimball nos fala do estado de coisas que vigorava nos EUA na década de 90 em razão da execução deste plano:

A denúncia da civilização ocidental como inextrincavelmente racista, sexista, elitista e patriarcal; os esforços feitos pelas administrações para fazer vigorar códigos de fala em ‘campi’ universitários; a reescrita despudorada de livros de história para amenizar sentimentos étnicos feridos: todos eles estão transformando a natureza da sociedade americana”.

Diante disto, pergunto, retoricamente, claro: será que estamos vendo o mesmo acontecer por aqui? A mim parece evidente, e do jeito que as coisas vão, com esta turba enlouquecida com gritos na boca e picaretas em punho, corremos o risco de perder não apenas em “A Divina Comédia”, mas todo o apanhado civilizacional legado há milênios pelos gênios que passaram por este planeta. O que é uma catástrofe, pois, como arremata Kimball, a “Civilização não é um dom, é uma conquista – uma conquista frágil, que requer ser constantemente escorada e protegida de assediadores de dentro e de fora”.

De tudo o que se disse, fica uma “moral da história”: se a sociedade burguesa ocidental não é perfeita, e isto é mais do que evidente, a nova sociedade que se anuncia para este século também não o será – ainda mais se insistir em levar a efeito a intenção de censurar grandes obras -, tendo em vista que não é dada às instituições humanas, a nenhuma delas!, a qualidade da perfeição tão propagada e almejada pelos idealistas radicais que se arvoram à condição de guardiões da chave do Paraíso.

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura